domingo, 25 de julho de 2010

O carro parou atrás de dois ou três na fila do vermelho. O vidro da janela estava descido, fazia calor e era incómodo o sol a dar-lhe nas pernas. Desligou o motor, como gostava de fazer quando parava mal o sinal fechava, para gozar melhor os barulhos de fora, que nos dias quentes tinham contornos mais densos e definidos. De uma esquina à sua esquerda apareceu um homem andrajoso. No pino do Verão vestia roupas grossas - pesadas e cinzentas. Era alto, seco sem ser magro, e parecia ter cinquenta anos muito gastos, nas rugas e no ar de desolação por baixo do gorro de lã. Quase lhe sentia o cheiro, trazido da calçada para o alcatrão pela calma do dia. Ia para sentir alguma comiseração, ia para ter o pensamento habitual perante aquela imagem, de sobre como se desequilibram as benesses no mundo, sobre como sofrem os que não têm casa e vagueiam pelas ruas. Ia quase para sair do carro e estender à mão do homem a esmola que nunca dava, quando reparou na voz dele. Subia, forte, determinada, a cantar: I really wanna see you, really wanna be with you, really wanna see you, lord, but it takes so long, my lord. Subia, alegre e afinadíssima na perfeita dicção, como se nunca tivesse existido um George Harrison no mundo e aquela fosse a primeira, a única, a absoluta vez em que as palavras eram cantadas.