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domingo, 15 de outubro de 2017

Moinhos na Poesia (86 e 87, dois poemas de Miguel Martins)

"Aldeia"

Adoro as levadas caudalosas,
serpenteando por entre avencas,
levando consigo pequenos blocos de terra,
ensopando a terra,
matando a sede a raízes
que mais parecem teias de aranha
cujo centro se esconde a vários palmos de distância
ou longilíneas tarântulas
Adoro os Verões iniciáticos,
a aprendizagem de caminhos e trabalhos sob as copas densas,
os banhos na represa por entre libélulas e alfaiates
e o esgar de nojo,
quando, da ponte,
se avista lá ao fundo um gato morto
preso nas silvas das margens de água límpida
Adoro os Invernos laboriosos,
as encostas escorregadias,
a lama nas botas,
a misteriosa caminhada até cada courela,
o gesto medieval que ceifa o talo à couve,
o toucinho na salgadeira
Adoro o regresso do ruído,
a chegada das crianças da cidade,
adoro vê-las subir às amoreiras,
as mãos miúdas confiando em nós de madeira centenária, enquanto os pais me visitam na adega,
cortamos uma broa e abrimos uma garrafa de morangueiro fresco
Adoro as casulas e os paramentos na sacristia
e o pó que os cobre nos meses de ausência do padre
e o branco nu da capela
e a pedra nua de todas as outras casas,
que é da cor das folhas de tabaco secas da plantação que o Eduardo tem ao fundo do povo e esconde dos fiscais
(ele que já viu mais mundo que todos os fiscais da região e trabalhou na PanAm e foi aos Estados Unidos)
Adoro as trutas apanhadas à mão e o viveiro de trutas, nossa única indústria desde que ruiu o moinho de água
e só Deus sabe quanto isso me custou e custa,
saber que não mais sentirei o cheiro do milho acabado de moer
Adoro as idas à mercearia da aldeia vizinha
e a pouquíssima variedade de produtos que aí se encontra,
como se estivéssemos em tempo de guerra
ou o século XX não ousasse começar por aqui
Adoro os fogões a lenha,
as enormes arcas de nogueira,
os colchões de palha de milho
confortavelmente concavados por décadas de hóspedes e a remota possibilidade de serem do tempo
em que João Brandão, “o terror das Beiras”, se acoitou nestas casas
Adoro os audazes mergulhos da ponte metálica coberta de caganitas de cabra
e as cabras
e a mão desusada que as conduz
e que sabe amar quando é chegada a noite
ou quando é chamada a iluminar um recanto de sombra
Adoro as lamparinas e os morcegos que vêm chupar o azeite das torcidas,
o cheiro das queimadas e o cheiro do tojo
acabado de roçar,
e as pequenas manchas roxas
que as amoras esmagadas imprimem no chão
Adoro as ameaças e as benesses do céu
e a certeza de que nelas se escondem todas as respostas da irrevogável vontade de Deus
e adoro como uns são pais dos filhos dos outros
e deixam Deus fora da questão
e não pegam em espingardas
Sim, adoro esta aldeia sem caçadores
em que os pardais só temem os espantalhos
e os gritos que ecoam desde o outro lado das montanhas
Adoro o tio Alfredo, que espantava as almas penadas, batendo com uma corda nas costas,
e o primo Alfredo
que trabalha tanto como quem trabalha mais
e mimetiza o mesmo gesto
para afugentar as dores que isso lhe dá por todo o corpo
Adoro a iniciação sexual dos rapazes,
quase sempre com outros rapazes,
anos antes de terem uma rapariga,
o que só acontece aos doze anos e depois não quer dizer nada,
que é como quem diz, fica vida fora
Adoro o orvalho desenhando folhas de plantas nos vidros das janelas
e janelas nas folhas das plantas
e a nitidez de todos os veios destas
e de todas as veias na pele das mulheres,
que nunca tomaram banhos de sol
e sempre cobrem as cabeças com lenços
ou chapéus de palha
E adoro-vos a vós
que nunca vistes nem vereis a minha aldeia
e acabais de a adoptar pelo útero

(Atol, Clube dos Poetas Vivos, Lisboa, 2002)


*
para o Changuito, com amor

Enquanto os pássaros pousam no parapeito da ponte
e aí encontram abrigo para a noite,
que se adivinha tão clara como a cidade finge ser,
Mário caminha num passo que quase parece estugado,
mas, na verdade, apenas sabe que se quer afastar
do ponto em que, vezes sem conta, uma explosão eclodiu,
embora seja evidente que esse ponto caminha consigo,
algures entre o estômago e a caixa torácica,
conquanto o sinta a tremeluzir na garganta,
como se uma tontura, feita nevoeiro, baixasse agora
sobre esse rio que, correndo nos dois sentidos,
quase sempre vem desaguar na sua boca.


Alcântara, Belém, Algés, e por diante 
sabe que, por ali, alcançaria a infância,
não fôra o intransponível muro que, de pedra e cuspo,
lhe atiraram aos olhos numa tarde sem data,
de maneira que o ronronar da mota ou o bater do coração
ficaram atulhados, sob um monte de lixo,
e nunca mais estiveram ao alcance da mão,
se bem que lhes sinta a falta quando calha
cruzar-se com um anjo na Calçada do Combro
e, na verdade, raro lhe aconteça pensar
em Steinbeck, Rockefeller ou na Guerra dos Seis Dias.

E esta distância, assim, tão longe e perto,
são dedos entre as mós de um moinho sem vento,
obrigando a escolher entre partir sem eles
ou aguardar sentado sobre a sua idade
até que a sua idade não interesse a ninguém
nem já saiba merecer o cetim de um sorriso.

Mas, ao menos, agora que os pássaros levantam do parapeito da ponte,
Mário — um pouco cerveja, um pouco loucura 
e muito coração — adormece no dorso de um cavalo de pedra
ouvindo o ronronar daquela moto
em que, ainda criança, rumava à claridade.

(O Caçador Esquimó, Lisboa, Fahrenheit 451, 2017, 21-22.) 

domingo, 14 de maio de 2017

Extra! Extra!

O Miguel Martins tem um novo blogue. Extingue O Único Verdadeiro Deus Vivo e abre um "Extra Light", suave cachimbo de milho (o que pode significar que abandona, até ver, a vida olímpica e segue uma outra, humílima via). Vá por onde for, que seja permitido ao Reboliço continuar a segui-lo.

sábado, 22 de outubro de 2016

[The Saints of Modern Art*]

Nem mistral nem calema, nem nevróticas danças
de feiticeiros contra as tensas muralhas
de um qualquer império. Um dos grandes poetas
da língua e do tempo morre numa cela de xisto e cal,
e nada pede. Esse era o seu único desejo
e habita-o como se fosse mansarda da alma
e toda a mesquinhez tivesse sido assoreada
na cave. Finalmente, encontrou o seu lugar
no mundo, um lugar só seu, em que as ombreiras
rangem como órgão de igreja afinado
pelas tempestades. Tem um harém de memórias
e vive numa orgia de ervas de cheiro, ao fundo
das narinas. Do sol, chega-lhe a proporção exacta
para que a penumbra não cegue de alegria.
Conquista e reconquista cada passo, até saber-se
definitivamente amado pelo seu povo de aranhas
e nervais. Talvez pudesse ter sido de outro modo,
ter nascido com asas e sem a atracção para o precipício
que o tornou celerado e menestrel. Que nada!
Recorda agora um profeta, feliz como uma galinha
do mato, que viu, a oriente, entregue ao acto de comer
ininterruptamente até sentir, de novo, fome:
a profecia do homem consumou-se e isso basta-lhe,
como um pensamento vazio ou um ruído branco.
Quando, finalmente, a morte vier assenhorear-se de si,
recebê-la-á com um abraço lânguido, quase sensual,
e juntos partirão à procura de um local que àquele se assemelhe,
sem que, para merecê-lo, seja preciso viver, que é como quem diz
quebrar o coração.

Miguel Martins
(publicado aqui em 05/06/2016 e no livro Desvão, não [edições], em Setembro de 2016)
(*Charles A. Riley II sobre o ideal ascético na arte contemporânea)

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Simenon sim!

(Foto do Miguel Martins, enquanto na sexta-feira passada discursava, na Universidade do Algarve, sobre Georges Simenon, a sua vida e obra: Reboliço, a lembrar-se de Balzac, outro prolixo escritor.)

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Oh...

Foi-se embora um amigo. Foi encontrar "o bicho branco de adormecer sem facas sobre o colo."