terça-feira, 20 de setembro de 2005

Manifestos

Fui ver o espectáculo de encerramento da Plataforma de Dança Contemporânea (PDC) que a Faro 2005 encomendou a coreógrafos portugueses. Um deles, João Fiadeiro (notável e persistente criador de arte), manifestou-se antes de começar a iniciativa, nas páginas do Expresso. Chamou ao seu manifesto "(Não) é assim a vida..." (está no suplemento Actual de 3 deste mês, não posso linkar porque o Expresso na rede, tal como o impresso, é "a pagantes"...) e nele denuncia o seu cansaço - a "exaustão" - perante o sistemático desrespeito das estruturas, principalmente as governativas, institucionais, pelos artistas "intermitentes", como coreógrafos e bailarinos - e anuncia a sua não participação na PDC. No espectáculo que se apresentou hoje em Faro, foi lido um manifesto, subscrito por duas associações de bailarinos e coreógrafos, a REDE e a PLATEIA. Trata-se de uma versão abreviada do que se encontra disponível para quem quiser ler e assinar.
O caso é complexo e não é num pequeno post que conseguirei entendê-lo ou fazê-lo entender. Mas tento perceber alguma coisa, entre o ruído que se vai criando de vários lados. Há uns três ou quatro anos comecei a tomar consciência mais crítica dela, a partir da situação de crise dos profissionais do espectáculo em França, que lá teve fortes repercussões políticas e sociais e se viu discutido pela sociedade civil, principalmente na imprensa, e de que tive conhecimento através da Les Inrockuptibles. Sei que, sempre que penso sobre esta questão, vejo a necessidade - cada vez mais uma urgência - de ouvir tomadas de posição claras, de ver assumidas as políticas de que só se vai sabendo (a sociedade civil, as pessoas que, como eu, estão alheadas das vicissitudes dos meios profissionais que não os da sua própria profissão) quando já os factos são consumados e irrevogáveis as (quase sempre más) decisões. Por isso, independentemente do sentido do seu conteúdo, considero de uma coragem infelizmente não costumada a atitude dos coreógrafos que hoje, a uma só voz, deram a conhecer ao público o que os inquieta na profissão e aquilo contra o que estão, desta maneira, em luta. Diz Fiadeiro, no seu texto, que "estamos a anos-luz dessa [...] consciência cívica", o que é verdade e me entristece. Como é possível que se continue a viver o dia-a-dia à sombra de um conceito político que ninguém discute? Como se sentem as pessoas do meu país quando vão a um espectáculo, sabendo que 1) o Estado que os governa tem como orientação política uma ideologia que prevê o apoio a actividades culturais; 2) o Estado que assim pensa (e se chama, por isso, "socialista"), não age de acordo com as palavras com que se define e se demite desse apoio? Como saberemos tornar este lugar, em que nos vai sendo dada a cada dia a sorte (o acaso) de vivermos, num PAÍS, mais do que um lugar de vivência casual, o verdadeiro resultado de escolhas conscientes e de visão mais do que imediata, se não temos opinião, não manifestamos, não dizemos o que pensamos acerca de assuntos que nos dizem, queiramos ou não, respeito? Não seria positivo que pelo menos se discutissem alternativas a esta forma ideológica? Qualquer coisa que se diferenciasse, por ser uma definição de papéis? Não sei muito bem a quem faço estas perguntas. Talvez o facto de as escrever aqui, num blogue pessoal, seja revelador desta espécie de sombra a que também acabo por me sentar, na esperança de que o mal não seja muito, de que não me incomodem do cantinho em que me meti e de que amanhã, quando acordar, já não me lembre destes desvarios. Desconfio, porém, que não será bem assim.
E percebo agora que, enquanto não existirem formas de cultura CONSCIENTEMENTE (da tal consciência cívica) criadas e CONSCIENTEMENTE recebidas, é indiferente apreciar o espectáculo que hoje vi: não existindo essa base cívica, espelho de uma comunhão social, com quem posso dialogar?, a quem digo, que o entenda, que gostei ou não gostei, e quais as minhas razões?