= AVISO – Este texto denuncia a intriga do filme; e tem muito pouco de "post"... =
Fui ver, finalmente, o filme de Jim Jarmusch. Para pensar nele, preciso de pensar em três elementos dele: a dedicatória a Jean Eustache, a estética dos fatos de treino e Homer Murray.
É no último destes elementos que vejo concentradas as perguntas mais sérias que Jarmusch ajuda a colocar com Broken Flowers. Homer Murray é filho de Bill Murray. Parece-se com ele e tudo. Surge numa única cena, a cena final e, dentro das fronteiras formais do filme, nada traz de surpreendente ou novo à acção: Don Johnston corre pela rua à procura de um rapaz a quem deu de comer e beber por pensar (desejar?) que fosse o presumível filho. No momento em que começa a conformar-se com a ideia de que, na verdade, nada naquele rapaz lhe confirmaria a suspeita e a sua busca não terá fim, atravessa a cena um VW carocha – azul bebé, pormenor relevante – e, ao lado do condutor, um outro rapaz olha-o fixamente, da janela aberta do carro. Traz vestido um fato de treino e parece-se com Don/Bill Murray. O olhar de Don não permite conclusões (é igual, aliás, durante todo o filme, com ligeiras subtilezas nas cenas em que tem de consubstanciar cumplicidades do passado com as mulheres em quem procura a – novamente, presumível – mãe do filho). Assim sendo, é apenas fora do filme, na ficha técnica, que o espectador encontra uma pista: a personagem do rapaz no carocha é interpretada pelo filho do actor principal. Tratar-se-á de um mecanismo de imposição da realidade na arte? (Evidentemente, salto por cima da hipótese de se tratar de coincidência.) Será marca de um programa realista (entendo por "realismo", aqui, tentativa de mostrar a realidade, evitando artifícios que possam indicar distorções na percepção que dela têm quer quem faz a arte quer quem a recebe.)? Porque é um road-movie tem de ser um filme realista? Penso nestas perguntas porque o final me fez questionar se o filho de que se anda à procura durante todo o filme será o filho da personagem ou do actor. Por outras palavras, no final, e por conta desta “intromissão” de Homer, o filme escancara-se para fora de si mesmo e força o extravasar da narrativa para fora dos seus limites representativos. Não creio que apenas coloque a questão da diferença entre uma realidade representada contraposta a uma outra, criada na e pela arte. A estratégia de Jarmusch complexifica essa duplicidade e cria uma espécie de nó, de trança, entre uma, outra, e um obscuro produto das duas. Respostas a estas perguntas, aliás, haverão de se encontrar no cruzamento com a dedicatória do filme a Eustache.
Neste momento, julgo que os fatos de treino fazem parte de um conjunto de marcas formais precisas e muito claramente utilizadas no filme para demarcar a realidade que se mostra: a vida no subúrbio americano. De certa forma, são um artifício demasiado óbvio para desenhar o lado caseiro e o verdadeiro carácter de Don – é só quando está de fato de treino, confortável em casa (mas de sapatos nada casual, note-se), que Don é confrontado com a sua vida: é quando a mulher o deixa e é quando, presumivelmente, o filho aparece. Este óbvio, porém, não traz necessariamente alguma coisa explicativa. Pelo contrário: da mesma maneira que Jean Eustache subscrevia uma espécie de meta-realismo que, por se expor, se anulava, também Broken Flowers rejeita a evidência do realismo (como o entendi acima) à força de a vincar. Como quem faz pressão sobre a pele a mostrar que é pele o que se vê e gera, nesse gesto, a ideia de sangue, de dor, ou de teimosia. É assim que compreendo as sequências do pensamento de Don nos aviões (não são sonhos, também isso é óbvio e será interessante reflectir sobre a maneira que Jarmusch encontrou de a representar no filme), é assim que leio o olhar de surpresa de Don quando Lola aparece nua - ou seja, sem o cor-de-rosa do roupão - na sala; é assim que vejo a máquina de escrever sobre a relva gasta ou a maçaroca de milho quebrada pela chuva, pelo esquecimento no meio do restolho e pela roda do carro. É assim que gosto de pensar nos filmes.
(Deixo este mesmo texto no outro blogue.)
Fui ver, finalmente, o filme de Jim Jarmusch. Para pensar nele, preciso de pensar em três elementos dele: a dedicatória a Jean Eustache, a estética dos fatos de treino e Homer Murray.
É no último destes elementos que vejo concentradas as perguntas mais sérias que Jarmusch ajuda a colocar com Broken Flowers. Homer Murray é filho de Bill Murray. Parece-se com ele e tudo. Surge numa única cena, a cena final e, dentro das fronteiras formais do filme, nada traz de surpreendente ou novo à acção: Don Johnston corre pela rua à procura de um rapaz a quem deu de comer e beber por pensar (desejar?) que fosse o presumível filho. No momento em que começa a conformar-se com a ideia de que, na verdade, nada naquele rapaz lhe confirmaria a suspeita e a sua busca não terá fim, atravessa a cena um VW carocha – azul bebé, pormenor relevante – e, ao lado do condutor, um outro rapaz olha-o fixamente, da janela aberta do carro. Traz vestido um fato de treino e parece-se com Don/Bill Murray. O olhar de Don não permite conclusões (é igual, aliás, durante todo o filme, com ligeiras subtilezas nas cenas em que tem de consubstanciar cumplicidades do passado com as mulheres em quem procura a – novamente, presumível – mãe do filho). Assim sendo, é apenas fora do filme, na ficha técnica, que o espectador encontra uma pista: a personagem do rapaz no carocha é interpretada pelo filho do actor principal. Tratar-se-á de um mecanismo de imposição da realidade na arte? (Evidentemente, salto por cima da hipótese de se tratar de coincidência.) Será marca de um programa realista (entendo por "realismo", aqui, tentativa de mostrar a realidade, evitando artifícios que possam indicar distorções na percepção que dela têm quer quem faz a arte quer quem a recebe.)? Porque é um road-movie tem de ser um filme realista? Penso nestas perguntas porque o final me fez questionar se o filho de que se anda à procura durante todo o filme será o filho da personagem ou do actor. Por outras palavras, no final, e por conta desta “intromissão” de Homer, o filme escancara-se para fora de si mesmo e força o extravasar da narrativa para fora dos seus limites representativos. Não creio que apenas coloque a questão da diferença entre uma realidade representada contraposta a uma outra, criada na e pela arte. A estratégia de Jarmusch complexifica essa duplicidade e cria uma espécie de nó, de trança, entre uma, outra, e um obscuro produto das duas. Respostas a estas perguntas, aliás, haverão de se encontrar no cruzamento com a dedicatória do filme a Eustache.
Neste momento, julgo que os fatos de treino fazem parte de um conjunto de marcas formais precisas e muito claramente utilizadas no filme para demarcar a realidade que se mostra: a vida no subúrbio americano. De certa forma, são um artifício demasiado óbvio para desenhar o lado caseiro e o verdadeiro carácter de Don – é só quando está de fato de treino, confortável em casa (mas de sapatos nada casual, note-se), que Don é confrontado com a sua vida: é quando a mulher o deixa e é quando, presumivelmente, o filho aparece. Este óbvio, porém, não traz necessariamente alguma coisa explicativa. Pelo contrário: da mesma maneira que Jean Eustache subscrevia uma espécie de meta-realismo que, por se expor, se anulava, também Broken Flowers rejeita a evidência do realismo (como o entendi acima) à força de a vincar. Como quem faz pressão sobre a pele a mostrar que é pele o que se vê e gera, nesse gesto, a ideia de sangue, de dor, ou de teimosia. É assim que compreendo as sequências do pensamento de Don nos aviões (não são sonhos, também isso é óbvio e será interessante reflectir sobre a maneira que Jarmusch encontrou de a representar no filme), é assim que leio o olhar de surpresa de Don quando Lola aparece nua - ou seja, sem o cor-de-rosa do roupão - na sala; é assim que vejo a máquina de escrever sobre a relva gasta ou a maçaroca de milho quebrada pela chuva, pelo esquecimento no meio do restolho e pela roda do carro. É assim que gosto de pensar nos filmes.
(Deixo este mesmo texto no outro blogue.)