segunda-feira, 9 de outubro de 2006

Discurso

"Olha, Tiaga: podes ler aqui o que era para ter sido o discurso de sábado. Felizmente para quem lá esteve, acabou por não ser imprimido e o que a Ana disse foi um resumo muito resumidinho do que aqui está. Doutra maneira, talvez tivesse saído uma lengalenga de bocejo. (Fala de mim.)"

“Pelas contas que temos feito, este moinho está de pé desde os anos 70 do século XIX. Terá uns 130 anos, mais coisa menos coisa. O último moleiro que aqui trabalhou veio para cá com 12 anos de idade. Casou, aqui habitou com a mulher e teve cinco filhos (dois rapazes primeiro, uma rapariga e dois rapazes à última). Aqui trabalhou até que pôde, num dos moinhos com mais freguesia da zona: o moinho teve luz eléctrica na década de 50 do século XX, a partir de uma bateria carregada com a energia do vento; em 1956 foi instalado um motor Diesel, que passou a alimentar a electricidade e a suprir as horas de menos vento, para que se conseguisse responder à procura de farinha.

Os anos 60 e a industrialização gradual da moenda ditaram o decair do uso dos moinhos de vento – pouco a pouco, neste moinho foi-se moendo menos, e essa diminuição foi coincidente com o avançar da idade do moleiro. Por volta de 1976 o moinho moeu pela última vez. Também dessa altura data a casa da amassaria, com a máquina de peneirar e a de amassar. Ainda se vendeu aqui pão durante algum tempo, mas já não se manteve o negócio. A partir dos anos 80, o moinho foi principalmente lugar de reunião da família, pelas festas ou outras ocasiões. O moleiro e a mulher continuaram a viver aqui até que puderam. No início dos anos 90 saíram. O monte ficou vazio – a família tentou que sempre aqui se regressasse, semanal, mensalmente, as vezes suficientes para que o esvaziamento da casa não representasse o abandono nem a ruína do moinho.

Em 1999, ainda em vida do moleiro, um dos seus filhos decidiu comprar aos irmãos as partes que lhes caberiam. Fizeram-se os actos – no princípio de Dezembro desse ano, sem chegar a ver a passagem do milénio, o moleiro morreu. Acredito que tenha morrido descansado, a pensar que o moinho teria ficado em mãos que o não esqueceriam. Essas mãos estão aqui hoje.

Esta é, em traços muito largos e factuais, a história do moinho. Mas não é toda a história. Nem a da comunidade maior, a história industrial de um país europeu durante a maior parte o século XX, de que este complexo de três moinhos [os outros dois, de proprietários que desconheço, estão em ruína] faz parte; nem é a história dos indivíduos que aqui passaram, por aqui terem vivido, por terem aqui vindo fornecer as suas despensas de farinha e depois de pão; por aqui terem vindo de visita, por acaso atraídos pela alvenaria caiada vista de longe; por aqui terem convivido nas datas mais alegres ou em reuniões menos festivas; por terem, às vezes, apenas ouvido falar do moinho. Cada uma destas pessoas tem uma memória mais ou menos longínqua, mais ou menos mágica, mais ou menos presente.

Aconteceu-me vir dar a esta família, a esta gente, a este moinho. Os pais que me tiveram e me criaram casaram-se neste monte. Tive a sorte (grande como este moinho é grande) de lhes nascer ainda em tempo de ver o moinho em movimento. Guardo memórias soltas, mais ou menos longínquas, mais ou menos mágicas, mais ou menos presentes.

Das pedras das mós
Dos pedregulhos arredondados com ninhos de vespas que nos faziam dar corridas e chorar das picadas
Das pedras na rua calçada
Das pedrinhas, do cascalho

Do som dos pés, dos sapatos, ao chegarmos, sairmos do carro e passarmos para a casa
Do som do vento, do som da chuva
Do som da chuva com vento
Do som do frio
Do som do calor
Da seara alta a empatar o som dos automóveis na estrada
Do som dos grilos, no Verão
Do som dos madeiros e das latas por baixo das corridas dos passos dos gatos, que eram muitos
Do som das galinhas e dos gansos
Do som das folhas secas, caídas, por baixo das patas lentas das galinhas
Do som da água a escorrer para baixo do tanque onde a avó lavava
Do som do motor
Do som das velas a girar, que é um som brutal, rápido, como o coração me ficava
Do som matraqueado das máquinas e do motor dentro do moinho
Do som do esvoaçar levantado dos pombos

Do cheiro do arroz de pombo
Do cheiro ao bolo de mel
Do cheiro das ervas fervidas, para o chá ou para a água do banho

Do som do candeeiro a gás, pequeno e fraco, na cozinha.

Do branco do cabelo da avó
Do branco do boné branco do avô
Do branco da farinha branca nas mãos do avô, da massa branca do pão amassado pela avó, feito em forma de merendeiros, que ela dava primeiro aos netos
Do branco das flores dos jarros em frente à casa
Do branco de toque tão suave das flores dos jarros

Do toque do tronco áspero das ameixeiras, quando as subia
Do toque pouco rugoso da figueira grande

Do som da esquilinha ao pescoço do Reboliço

Quando digo moinho, digo isto tudo

Digo o som da lenha a arder, na casa, no lume
Digo o som dos talheres de metal leve nos pratos envelhecidos

Digo o cheiro dos coentros pisados para a açorda

Digo o gosto do alho nos coentros e no bacalhau da açorda
O gosto do arroz de pombo
O gosto das ameixas maduras, grandes, carnudas, comidas à pressa, com o sumo a escorrer-me pelo queixo e pelos braços

Digo o toque das folhas das couves, das canas do carunchoso, quando apanhamos caracóis
Digo o toque da cal nas paredes

Digo o som do chão por baixo dos pés.

Estas são algumas só das minhas memórias, que não terminam aqui nem hoje e se prolongam por gente que está aqui, por gente que está noutros lugares do mundo, por gente que não está já no mundo palpável mas resiste nas memórias de mim e de outros que aqui estão – se começar a desenredar este emaranhado de memórias, de nomes, de gente, ficaremos aqui a lembrar e arriscamos não viver. Se não vivêssemos, porém, ficaríamos sem memórias – e essa possibilidade não me agrada.

O moinho está aqui. Está aqui em pedra, cimento, madeira, ferro e cal; está nas fotografias e numa cópia dolorosamente fraca de um filme dos finais da década de 50; está por aqui, perto e longe. Visitem-no, olhem nele as memórias mais amplas, de bocados de um povo, e as mais formiguinhas. E encham-no de memórias vossas. É também para isso que ele é Grande.”