segunda-feira, 22 de janeiro de 2007

Cenas Vivas; ou Moinhos na Poesia (9)

Só hoje o Reboliço soube da morte de Fiama Hasse Pais Brandão. Procurou entre os seus poemas, recordava-se vagamente de haver uma referência a algum moinho. É um "moinho de pás", mas um moinho. Num livro muito adequadamente chamado Cenas Vivas (de 2000).

Aquela saia roda
como o topo do moinho de pás,
o que em mim confirma agora
que o vento me reveste.

                                    *

Quando depois do nascimento me vestiram,
a roupa então em mim resplandeceu.
Mas estava nua, sem cambraia
ou a memória simples dela nos sentidos.
Nua e solene, com a roupa alheia
em tomo do meu corpo. E ignorava
valor, matéria e as pompas
que entregam roupas e versos ao comércio.
Acreditava só que o gesto amado
de me cobrirem de panos ao nascer
seria a minha glória

                                      *

O pequeno velo de roupa é
o da imaginação. Vestiram-me
para me velar, como janelas afloram
nas casas ou como a palha envolve
medas. As escassas vestes
nas montras eram também
sinais da imaginação. E a linha
nas mãos da costureira assim
imaginada era.

                                        *

Tão devagar cosia pelo traço do giz
a máquina que os pés moveram balançando
quanto os meus olhos devagar seguiram
o traçado dos pontos e o meu espanto
de ver a ordem surgir dos riscos soltos.
O rosto atento caía sobre o pano
que pouco a pouco me tomava a forma
do meu corpo tocado pela luxúria
de tão belos cetins, veludos
inverosímeis e, como tudo o que
a memória gera, fontes de dores.

                                           *

O tépido calor cobre-me
por fora de tules em flor.
As folhas do loureiro ridentes
assemelham-se ao meu vestido
de verde cassa. Agradeço, pois, às bocas
de parentes os nomes ditos.

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Todas as roupas usadas
próprias do Verão são aquele
vestido único, porque me haviam dito
que ao entrar pelos olhos
ele me cobria de fulgor.

                                               *

Com a saia de tobralco leve passei
entre as nossas hortas, águas do poço,
coisas da quinta tão diversas todas.
E amei cada um dos vários nomes,
e também as palavras especiosas
que na retrosaria designam o belo fio
e aquelas que me mostravam os tecidos
em sequências de alucinações novas.