terça-feira, 9 de novembro de 2010

O medo é como um sonho acordado

Como se a Terra corresse
Inteirinha atrás de mim,
O medo ronda-me os sentidos
Por baixo da minha pele.
Ao esgueirar-se viscoso,
Escorre pegajoso
E sai –
Pelos meus poros,
Pelos meus ais.

E penetra-me nos ossos
Ao derramar-se sedento
Nas entranhas sinuosas,
Entre as vísceras mordendo.
Salta, espalha-se no ar,
Vai e volta, delirante,
Tão delirante...

É como um sonho acordado
Esse vulto besuntado
A revolver-se no lodo,
No deslizar de uma larva,
Emergindo lá ao fundo.
Tenho medo, ó medo,
Leva tudo, é teu
Mas deixa-me ir.

Arrasta-me à côncava funda
Do grande lago da noite,
Cruzando as grades de fogo
Entre o Céu e o Inferno
Até à boca escancarada,
Esfaimada,
Atrás de mim,
Atrás de mim...

É como um sonho acordado
Esses olhos no escuro
Das carpideiras viúvas
Pelo pai assassinado,
Esventrado por seu filho
Que possuiu lascivo
A sua própria mãe
E sua amante.

Meu amor, quando eu morrer,
Ó linda,
Veste a mais garrida saia;
Se eu vou morrer no mar alto,
Ó linda,
Eu quero ver-te na praia.
Mas afasta-me essas vozes,
Linda.

Tens medo dos vivos
E dos mortos decepados
Pelos pés e pelas mãos
E pelo pescoço e pelos peitos
Até ao fio do lombo –
Como te tremem as carnes,
Fernão Mendes.
Fausto Bordalo Dias, "Como um Sonho Acordado", Por Este Rio Acima.