quinta-feira, 23 de junho de 2011

"O Charlot é que sim"


Creio que uma das muitas pessoas que têm razão no mundo é Charlot.
É certo que passa fome, tem o seu frio no Inverno e as botas todas gastas,
mas ri-se de muita coisa,
despreza admiravelmente a ordem
e vai aguentando as cacetadas e prisões e outras violências.
No entanto,
o multimilionário Rockefeller é que passa por inteligente e empreendedor e grande,
e honesto e moralista,
e benfeitor também quando é preciso.
É evidente que o Rockefeller até trabalha aos domingos,
e que isso vai ficar na história dos grandes feitos de hoje,
mas o que mais me alegra são as vagabundagens do Charlot,
e o orgulho dele contra as moedas acumuladas,
e aquele chuto na ponta do cigarro ao ir para a prisão,
e esse infinito voltar de costas às fardas,
e o comprar comovidamente flores à rapariga cega,
e dar-lhe a mão depois 
e entristecer dos pobres serem tristes.
... É por isso que nunca sonho com o Rockefeller.
(Eduardo Valente da Fonseca, Tempo de Manequins, 1959
[republicado em Poesia Portuguesa do Pás-Guerra: 1945-1965,
organizada por Afonso Cautela e Serafim Ferreira,
Editora Ulisseia, Lisboa, pp. 155-156]. Obrigada, Changuito.)