segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Moinhos na poesia (39)

Era como uma téla marinha, encaixilhada em cantarias brancas, suspensa do céu azul em face do terraço, mostrando, nas variedades infinitas de côr e luz, os episodios fugitivos d'uma pacata vida de rio: ás vezes uma véla de barco da Trafaria fugindo airosamente á bolina; outras vezes uma galera toda em panno, entrando n'um favor da aragem, vagarosa, no vermelho da tarde; ou então a melancolia d'um grande paquete, descendo, fechado e preparado para a vaga, entrevisto um momento, desapparecendo logo, como já devorado pelo mar incerto; ou ainda durante dias, no pó d'ouro das sestas silenciosas, o vulto negro de um couraçado inglez... E sempre ao fundo o pedaço de monte verde-negro, com um moinho parado no alto, e duas casas brancas ao rez d'agoa, cheias de expressão—ora faiscantes e despedindo raios das vidraças accezas em braza; ora tomando aos fins de tarde um ar pensativo, cobertas dos rosados tenros de poente, quasi similhantes a um rubor humano; e d'uma tristeza arripiada nos dias de chuva, tão sós, tão brancas, como nuas, sob o tempo agreste.
(Os Maias: Episódios da Vida Romântica, capítulo I;
Porto, Livraria Internacional de Ernesto Chardron, 1888. Versão web.)