sexta-feira, 31 de maio de 2013

"Ai, Ana, Ana, três vezes Ana..."

Era assim, lembra-se o Reboliço, que a D. Antónia ("Minha Senhora") ralhava com ela, das poucas vezes que ralhava, e seria por conta de um acento mal assentado, de uma vírgula ausente, de um ponto que não finalizava nada. A D. Antónia. Tinha em tamanho o inversamente proporcional à paciência, à autoridade de quem sabe que sabe e que sabe dar a saber. As arrelias, se as tinha, quando as tinha, mostrava só as dali, da sala de aula; não havia problema que do mundo de fora adentrasse aquele casulo de aprender, almofadado e muito vivo. "Só não te esqueces da cabeça porque está agarrada ao pescoço", vinha, se falhava uma letra, "porque me esqueci". A vergonha, ali, era saber que se sabia e não se fizera o máximo esforço por usar o saber. Não saber, ignorar, era pecado curável e curá-lo era o fito das horas, essas sim, que dali se derramavam quando, por obra da D. Antónia, se fazia de qualquer lugar e de qualquer minuto o tempo de roubar um pouco mais à insciência. A D. Antónia que se me foi.

(Por conta dela, intermédio da sua aprendiza, ganhou outra mestra autonomia no assinar o nome. Estava a aprendiza na classe primeira, guiava a D. Antónia a mão na sala de aula, insistindo na postura, "Mas senta-te bem!" - de que serviriam quatro anos, querida D. Antónia?, a teimosia escoliosou... -; depois da escola, corria para casa a aprendiza, largava no chão da casa do tanque sacola, cadernos, o casaco, e, de pé, ao lado da Sra. Virgília, as mãos a cheirar-lhe ao sabão azul e branco que ainda secava com o pano, que do tanque girava só o corpo também pequeno para o tampo da máquina de lavar roupa, ali faziam nascer o V muito desenhado, igual ao da D. Antónia, igual ao da aprendiza, depois o i, depois o r e o g, e pelo nome seguiam, as duas, que eram três, afinal, e se transformariam naquela entidade orgulhosamente enunciada, ao balcão de uma repartição, "Não é preciso, sei assinar o meu nome." Obrigada, D. Antónia. Muito obrigada.)