sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Moinhos na poesia (53)

    "[...] Silves, Santarém, Beja, Faro, Évora, Lisboa podem orgulhar-se dos seus homens de cultura, das suas escolas e de ousarem brilhar durante algum tempo como estrelas secundárias integradas no todo peninsular.
    Por outro lado, este Islão hispânico pulsava em sintonia, certamente desigual, com todo o mundo islâmico, em particular com os grandes centros orientais. O sunismo medinense chegou bastante cedo a Córdova. Mas a filosofia,olhada com desconfiança ou perseguida por alfaquis e ulemas, pulsava com atraso. [...]
    Teremos de esperar pela época dos Descobrimentos e Conquistas para que o Oriente penetre de novo e intensamente na nossa cultura. Mas, nesse mesmo tempo, os expoentes de referência do conhecimento científico, continuarão a ser o médico al-Razí, o médico hispânico Avenzoar, o uzbeque Avicena e o cordovês Averróis, como poderemos verificar, por exemplo, no Colóquio dos Simples e das Drogas de Garcia da Orta.
    A Reconquista não suprimiu as marcas da civilização islâmica que perduraram na língua e em muitas técnicas agrícolas e artesanais até ao século XX. Os cristãos medievais herdaram a estrutura das cidades islâmicas, usaram os seus alarifes e alvanéis – os “meus mouros” de Afonso Henriques – na construção de catedrais e fortalezas. Um deles deixou escrito no transepto da sé de Coimbra: “escrevo isto como recordação permanente do meu sofrimento. A minha mão perecerá um dia mas a grandeza ficará”.
[...]
    No campo das ciências e da cultura, não faltaram, em território português, gramáticos de língua árabe, jurisconsultos, sufis, escreventes de história, de crítica literária e principalmente poetas.
Abu al-Hayaye al-Halam de Santarém escreveu um comentário sobre a obra do poeta oriental Mutanabi.
    Por sua vez, Ibn Abdun de Silves analisou o longo poema sobre o fim trágico dos abádidas e aftácidas, escrito pelo poeta eborense Ibn Abdun.
[...]
    Ibn al-Imam AL-SHILBI (+c. 1156) escreveu as biografias de muitos dos seus contemporâneos na obra Simt aldjuman, infelizmente perdida. No entanto, restaram trinta e cinco passagens conservadas por Ibn Said no Mugrib, passagens que constituem um quarto deste livro.
    Para a história e a história da cultura do Islão Ocidental a Dakira (Tesouro) do santareno IBN BASSAM, de seu nome Abu al-Hassam ibn Bassam al-Santarini (+c.1147) é fundamental. A obra reúne em quatro volumes uma antologia dos poetas peninsulares, recheada de preciosas notícias de natureza social e político-militar. Um outro texto, Al-Mann Bil-Imama do bejense IBN SAHIB AL-SALA aborda a  história dos almóadas e de algum modo um pouco da história política no actual Alentejo e Algarve. Escreveu também o Kitab al-Muridin (Livro dos Adeptos), hoje perdido e que seria indispensável para o estudo do movimento dos muridines no sul do nosso território e no ocidente peninsular.
    Os poetas perdem-se como abelhas ao redor do favo do poder. Mas alguns erguem-se a grande altura. Cantam os seraus nocturnos, o vinho, o amor, os jardins, a água, a paisagem humanizada. Aqui e ali ensaiam a especulação filosófica. No século XI sopra uma brisa de audácia e de liberdade com toda a ambiguidade que esta palavra carrega.
[...]
    IBN MUCANA Alisbuni Alcabdaq (o lisboeta, o de Alcabideche) (+pouco depois de 1068) cantou os bois de lavra, os javalis que assolavam as hortas, as abóboras, as cebolas, os moinhos de vento."

(António Borges Coelho, Tópicos para a História da Civilização e das Ideias no Gharb Al-Ândalus, Capítulo V., "Poetas Santões e Filósofos do Ocidente do Ocidente", Instituto Camões, Colecção Lazúli, 1999, pp. 51-55. Disponível a partir daqui.)


Ó tu que habitas Alcabideche! Oxalá nunca te faltem
cereais para semear, nem cebolas, nem abóboras!
Se és homem decidido, precisas de um moinho
que trabalhe com as nuvens sem dependeres de regatos.
Quando o ano é bom, a terra de Alcabideche
não vai além de vinte cargas de cereais.
Se rende mais, então sucedem-se,
ininterruptamente e em grupos compactos,
os javalis dos descampados.
Alcabideche pouco tem do que é bom e útil,
como eu próprio, quase surdo, como sabes.
Eis-me em Alcabideche, colhendo silvas com uma podoa ágil e cortante.
Se te disserem: “gostas deste trabalho?” responde: “sim”.
O amor da liberdade é o timbre de um carácter nobre.
Tão bem me governaram o amor e os benefícios de Abu Bacre Almodafar
que parti para um campo primaveril.

Ibn Mucane (versão de António Borges Coelho, vista aqui. Outra versão, de Fausto Amaral de Figueiredo, pode ler-se aqui.)