sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Moinhos na poesia (58)

Tantas vezes maldizia
Este céu e esta terra,
As mãos do moinho com musgo
Agitando-se pesadas!
No anexo está um morto,
Hirto e grisalho, num banco,
Como há três anos atrás.
Os ratos roem os livros,
Para a esquerda verga a chama
Da vela de estearina.
E canta e canta odioso
O guizo de Níjni-Novgorod
Uma singela canção
Da minha aldeia amarga.
E pintadas vivamente
Erguem-se rectas as dálias
Pelo carreiro de prata
Com corações e absinto.
Foi assim: a reclusão
Tornou-se segunda pátria,
Mas da primeira não ouso
Nem nas preces recordar.

(Anna Akhmatova, Julho de 1915, Poemas, trad. Joaquim Manuel Magalhães e Vadim Dmitriev, Lisboa: Relógio D'Água, 2003, p. 27. Obrigada, Inês!)