domingo, 25 de dezembro de 2016

(Natal de há seis anos)

Enroscado ao pé do lume, o Reboliço dormita ao vuruururuuururuuu hipnotizante do fumo a gastar o madeiro - só não entra no mais fundo do sono porque os troncos finos, o musgo seco e alguma carcaça de insecto interrompem, a estalar, a melodia das brasas. Do monte do lado vem o cantar de um galo temporão: despede-se da perua e dos gansos que, presos debaixo da mesa de pedra, no quintal, aguardam na bebedeira doce a chegada da morte e da panela.
O Moinho fita tudo isto, indiferente aos dias que são, às pessoas que há e às que não estão. Já viveu quantos Natais?, quantas festas? Agora exibe no começo do socalco um letreiro branco a letras negras: "propriedade privada" - coisa estranha para enxotar algum casal que quisesse encostar às suas paredes o namoro, alguma raiva de motor a patinar nas ervas daninhas que os dedos não apanharam. É do Moinho, ou do Reboliço, a indiferença? Atrás da nogueira jovem (já tem umas dúzias de ramadas cheias de folhas, agora secas, quase dois metros de altura e outro tanto de amplitude de copa), o telhado da garagem anima-se com a bulha de três dos cães do vizinho - andam ao cheiro de rato ou de coelho que ali se tenha acoitado. Nem ouvem o "Qu'é da rua!" a mandá-los para o outro monte. Latem, caçam, farejam, o entusiasmo nas caudas e nos focinhos a brilhar.
Numa das janelas do Moinho, a que fica por cima da porta, vêem-se três ou quatro marcas de mãos enfarinhadas. Algum visitante pequeno, alegre de ter experimentado a macieza moída, quis ver como parecia o vidro assim decorado.
O dia está frio, mas só o bastante para se querer fazer lume e não sair da casa. O Reboliço, agradecido, reentra na dormência. Vê-se noutros lugares, terras sem fogo de lenha nem precisão dele, com o calor só de haver gente, outras luzes, novidades. Quando o tronco estala de novo, abre um dos olhos e, pelo vidro da porta, vê de relance um gato rápido e esguio atrás dos passarinhos brancos de cabeça azulada, que desde manhã saltitam pelas pedras da rua. "Quatro lumes tenho eu nesta casa," ouve dizer a dona grande. O dono cantarola ao abrir da noite: "Já lá vem nascendo o Sol, lá das bandas do Algarve - Ai, enganei-me, é a Lua, que o Sol não nasce tão tarde."