sábado, 13 de janeiro de 2018

(Ver é como ler.)


(Foto da capa do nº 22 da Telhados de Vidro,
sobre imagem de Rui Chafes, e onde se publicam,
entre obras maiores, esses pobres versos que aí vão:
Reboliço, babado.)

A UNS ÓCULOS

Uso um par de lentes novas.
Vejo tudo: o esqueleto de uma cama, ao alto, na marquise de um 5º andar
(não existe a arbitrariedade dos signos linguísticos);
cada agulha no ramo daquele pinheiro;

a gata que, aos meus passos, se escondeu no arbusto,
fugida, fugida,
estacou quando se pensou a uma distância segura e girou a cabeça na minha direção
(vejo tudo: dispensa lentes de vidro, armação de massa, concentra o foco do olhar com a imobilidade do corpo inteiro).

Vejo a luz dos dias crescidos e convenço-me que é das lentes.

*

Dentro do comboio em marcha, uma bailarina atravessa a carruagem, apoiando-se no espaldar de cada cadeira.
Sentada num dos extremos, o olhar alcança o outro e
vejo-lhe
o cambalear impotente, a quase queda de marioneta enquanto as novíssimas
flores de esteva
passam entre o verde texturado das cortinas
(fabricadas, diz a etiqueta, no Vale de Santarém).

Sei, portanto, a razão por que escolheu ser bailarina.

*

Nos dias crescidos, a manhã mostra sobre a ria línguas de terra.
São ilhas pequenas, escurecidas da vegetação anfíbia que as cobre.
Entre a maré baixa que ajuda a manhã e os meus olhos, ajudados pelo novo par de lentes, estão as árvores do jardim público. Mudam de tom: escuro ou claro, conforme lhes dá a sombra de nuvens ou de prédios, as ilumina um reflexo, ou a terra, rodando, se coloca a jeito do sol.

Vejo tudo
com as lentes.

Se as afasto, instala-se uma névoa invernil, o desconforto de saber que o que está diante de mim foge para longe da nitidez. Como ficam os relatos dos sonhos, quando não se contam a ninguém.

Ana Isabel Soares,
10/03/2017-23/03/2017,
Telhados de Vidro, 22, Novembro de 2017, pp. 11-12.)