quinta-feira, 31 de março de 2005

Domingo de Ressurreição

Se eu quisesse, pelas frinchas entre as tábuas velhas do último andar do moinho veria muito do que há nos pisos de baixo, e até lá para fora. Com a casa do motor limpa e pintada de novo e o interior do moinho já mais arrumado, ouvem-se bem as vozes de um lado para o outro e, por vezes, confunde-se quem chama, não se distingue se respondemos de dentro do moinho ou de debaixo dele.

O banco que corre todo o círculo da parede deste piso de topo é feito com três ripas alinhadas: a de trás, encostada à parede, por causa disso é sempre arredondada. De passo largo em passo largo, dois pés sustentam as ripas. Uma delas está quase solta, por trás do engenho Norte, mesmo a chegar à janela. Estou sentada em frente à abertura onde termina a escada e daqui vejo a mó velha, sustida pela parede do andar de baixo. Movo o olhar para dentro outra vez, e para cima: a grande roda dentada e o carreto que lhe enche os dentes são agarrados por ligas de ferro: é o que aguenta a madeira. O carreto vai-se gastando, na casa há um que deixou de servir. Calculo que se passe o mesmo com os dentes da roda, que vejo que são amovíveis. Como decidiam quando era a altura de os substituir?

Para fazer rodar o tecto, em frente à roda dentada, por baixo do mastro grande, há um torniquete com quatro braços. Está encaixado numa estrutura que sustenta a saída do mastro para fora da cobertura – o peso disto tudo é tanto que, neste metro e meio do aro do topo do cilindro são quatro as rodas de ferro encaixadas no carril, separadas entre si não mais que uns centímetros. Neste piso não há nichos, mas numa das dezoito argolas pequenas está pendurada uma ferradura velha. Fecho a única janela que estava aberta (aqui não têm vidro, só portadas), volto a caminhar por cima do banco corrido e começo a descer ao som da sineta.

Cá em baixo, a ombreira do lado esquerdo da porta tem um buraco mais ou menos a meio, feito a formão e pintado da mesma cor da porta: é para a chave, quando está do lado de dentro com a porta encostada à parede, não ferir a madeira (“tenho uma cova no peito de me encostar ao cajado” – neste caso, de o cajado se encostar a mim).

A pedra onde assenta a escada do piso de baixo tem uma fenda, e está ligada com uma chapa de ferro que já é ela.