quarta-feira, 30 de março de 2005

Sexta-feira Santa


Com a chave grande na mão, subi os oito degraus do sopé até ao moinho. A porta, pintada há poucos meses de encarnado-sangue, resistiu um pouco à primeira volta da chave. Mas a segunda, que a abre, já me estava habituada e cedeu sem esforço. Avancei a pedra larga que faz de soleira e, com dois passos curtos, pisei já o sobrado, atravessando o piso até à outra porta, que dá para poente. Abri-lhe o postigo e o vento invadiu a casa, o barulho como o afagar irado de quem tem estado muito tempo longe das carícias às paredes. Entrou, portanto, o vento, com ruído e moção.

Voltei à porta principal, que é de lá que sai a escada para o piso de cima, o intermédio. As pernas da escada são duas ripas longas, grossas, de madeira já bichada e com restos de pó de ser comida, tinta branca e, se se cheirar de perto, ainda alguma farinha velha. Entre as duas tábuas, assentes obliquamente sobre outra pedra, em ângulo com a da soleira, entalham-se um, dois, três, quatro, cinco – este com o lado esquerdo marcado, encovado pela macieza da madeira ou pelo passo dos homens que, a meio caminho, forçavam mais o corpo sobre o degrau – seis (o mais composto), sete, oito degraus, e o nono já é piso assoalhado. O sobrado deste piso são duas camadas sobrepostas de tábuas, uma sobre a outra e a entalar outras duas, mais fininhas, a fazer enchumaço. Vejo-o à saída da escada, como se vêem os estratos morfológicos no corte de um terreno.

Quando se começa a subir, a partir do terceiro degrau, sem grande esforço a mão esquerda alcança uma corda. A corda é uma cauda velha de sisal, pendurada desde sempre a partir de um buraco no terceiro piso. Sai um palmo desse buraco no tecto-chão, até ter dois ou três nós grossos, provavelmente dados para não empatar a ponta o caminho de quem sobe. Os nós já são a corda. Depois, desce quase dois metros, afunila-se numa ponta cada vez mais rala até ao extremo, por altura entre o penúltimo e o último degraus. Tem um nó pequeno na ponta, iluminado por fios de lã de três cores diferentes: amarelo, verde claro e castanho. Não percebo se o amarelo não seria antes o verde, já desbotado. Assim como parava o passo dos homens a meio da escada, parava eu os olhos na mão esquerda do meu avô quando ele, a subir, agarrava o nó no fundo da corda, o corrimão. Eram só segundos – a corda servia o balanço do corpo para o resto da subida –, mas nesses segundos só, sem eu pensar, vinham-me à ideia, pelos dedos grossos e gretados, de rugas secas e pouco fundas, as sacas, os grãos de trigo, a farinha muito branca ou muito creme, a massa no largo alguidar de barro e o pão sobre a pá que o tirava do forno.

Enquanto escrevo e subo e desço as escadas, o vento vai assobiando dentro do moinho. Ali, no andar de topo, assobia sempre, há uma janela aberta. Além desse barulho, ouço o revoltear dos plásticos das obras no socalco. (Agora que me lembro do meu avô, na cabeça repito o ritmo hip-hop de Boss A.C.: “... sou eu e és tu”.). Este meu avô não era de cantar. A campainha, lá em cima, marca quando o vento muda a direcção do sopro. O primeiro e o terceiro degraus desta escada estão quase em nada, só buraco. Do lado esquerdo da escada, rasteiro com o topo da ripa desse lado, há um remate de madeira, uma tábua em meia lua longa a ajustar-se ao redondo da parede.

A escada que leva do segundo ao terceiro piso está em vão, não se arrima à parede e não tem costas como a outra. Atrás de si tem uma janela e, vista de fora, a transparência do vidro é cortada pela diagonal das ripas. É mais recente e, tirando o degrau de baixo, todos os outros estão inteiros; são mais grossos – ou estão menos gastos. A escada de cima não assenta sobre pedra, mas sobre o soalho. Já foi deslocada do ponto original de fixação: há duas marcas fundas na madeira do chão, fundas da grossura de um dedo mínimo e com a mesma largura e o comprimento dos pés da escada.

No piso do meio há quatro janelas, uma para cada um dos pontos cardeais. Os caixilhos, as molduras e as portadas são de madeira pintada da mesma cor que as portas. Para fora, têm cantarias de pedra já muito picada. Logo à saída da escada, a janela que dá para Sul, para o poço, o castelo e a cidade, não deixa fechar a portada.