segunda-feira, 30 de maio de 2005

Em Lisboa

"Sentei-me num dos bancos, e fiquei a saborear aquela paz, aquele isolamento, aquela claridade que a passagem de um eléctrico de quando em quando amarelava fugidiamente. Às vezes, percorrendo distraidamente certas porções de Lisboa, houvera à minha volta, ou deslizara a meu lado, alguma atmosfera como aquela. Outras vezes, numa rua modificada ou alargada, em que demolições inconclusas enchiam de escombros e de lixo, ou de paredes interiores semi-demolidas em que sinais de vida ainda se agarravam, um dos lados da rua, eu sentira que, do lado oposto e não atingido pelas modificações, um velho palacete, ou uma correnteza de humildes casas, projectavam uma aura semelhante àquela, apenas já marcada por uma condenação senil. Ainda outras vezes, como por exemplo, na Graça, na Estrela, nas Amoreiras, ou na Costa do Castelo, a atmosfera matinha-se, mas mais palpitante, como quando, ao silêncio que só os passos cortavam, se sobrepunha no ar um eco de vozes, de gritos longínquos, de burburinho feito da agitação tranquila em muitas ruas diversas."
(Sinais de Fogo, p. 491)

Não é possível congratular-me com isto: a leveza de ter usado um texto não meu para me dispensar de escrever eu mesma custa o castigo de me roer por não ter sido eu mesma a escrever estas palavras. Bendito, e humilde, Jorge de Sena...