sábado, 4 de junho de 2005

"Condomínios privados fecham acesso a praias do Algarve" (jornal Público, 1 de Junho de 2005)

Iam lá quase todas as tardes - ela, o pai, o irmão e a irmã. Bastava que o vento não fosse muito frio, assim que chegava a casa, o pai pegava neles e levava-os. Dentro da carrinha azul escura, iam os dez quilómetros a fazer figas para que estivesse maré baixa. Nunca se preocupavam em ler o almanaque, ou em tomar nota das horas a que houvera baixa-mar no dia anterior, ou que lua estava. Certamente, o pai saberia tudo isso, mas não queria, por nada, perder aquela ansiedade em que os via, que lhes punha os pensamentos no mar, só no mar, e lhes fazia acreditar que sim, a maré baixa fora convocada pela força das suas vontades.

Mal parava o motor da carrinha, desciam a correr e a correr atravessavam a ponte cor de rosa: do meio dela confirmavam que a água quase deixava ver o fundo do ribeiro, e abalavam em maior correria ainda, passavam os canaviais solitários ao lado do carreiro que subia a duna e, já descalços, tentavam ser os primeiros a molhar os pés.

Chegavam à Falésia sempre quando já não havia ninguém na praia, ou quase ninguém. Mesmo nos dias de maré rasinha, quando a conquilha abundava nas poças muito brilhantes da areia castanha, só um ou dois homens puxavam os arrastos de cintura, para lá e para cá. O areal, branco, limpo e amplo, era só para eles. O mar, liso-liso e de um azul que começava a escurecer, não era de mais ninguém. Quando nadavam, nesses dias, nus, ficavam em silêncio a escutar os anéis de água centrífuga que se alongavam dos seus corpos. Às vezes, sim, conversavam. Perguntavam "já imaginaste, se...?", e não queriam saber a resposta. A praia estava toda à volta deles, a areia lisa e o mar amplo, liso e escuro.

Uma vez, enquanto se moviam suspensos na água que lhes marcava as presenças com curvas a afastarem-se, perceberam ali perto uma série de pequenas esferas. Seriam como berlindes dos grandes, castanhos, ou só escurecidos, a boiar à sua frente. Quiseram vê-las mais de perto, mas, com o pequeno alvoroço do movimento, as esferinhas tinham desaparecido. Nem minutos a seguir, viram-nas de novo, a surgirem todas ao mesmo tempo à tona das ondinhas de azul-negras, deslocadas para poente. Tentaram outra vez aproximar-se, com mais suavidade, a flutuar só e a deixar que a corrente débil os guiasse. Viram então, porque a água transparecia ainda nos círculos à volta delas, as pequenas cabeças de um grupo de tartarugas. Debaixo das rugazinhas do mar, as carapaças pareciam pouco maiores que mãos grandes abertas e cada cabeça era o tal berlinde com dois olhos muito abertos, todos na mesma direcção. Ficaram sabe-se lá quanto tempo - até depois do sol-pôr - a brincar àquilo: meio metro perto delas, as tartarugas submergiam; logo reapareciam ao longe, e eles voltavam a flutuar até onde as cabeças tinham assomado, para submergirem outra vez.

Na areia molhada, o pai acenou-lhes e regressaram: os olhos vermelhos de tanto tempo no sal, a tiritar de já não haver sol, enrolaram-se nas toalhas que ainda tinham o seu calor.