quarta-feira, 11 de janeiro de 2006

Moinhos na poesia (3)

Vejo, outra vez, as fotografias que tirei em Trás‑os‑Montes. Quase
todas mentem. Nenhuma dor intolerável delas ficou. Nenhuma esperança.
Qualquer raiz.

Trás‑os‑Montes seria para Paul Strand ou Van Gogh, que chegavam
a terras de fogo sem pressa, e só partiam exangues, com os sentidos
destruídos. Seria para Miguel Torga, que foi criado por uma águia e nunca
esqueceu o gosto de uma cebola com sal.

... porque contemplei fragas e a amplidão deixei.
Vi queimar florestas e as razões oculto.
Ouvi cantar as aves e o cristal perdi.

Fermentava o feno.
Voltavam os ramos e os engaços.
O linho era erva, a amêndoa silêncio.

Como quem parte de uma sombra para um poema, e de uma folha
guardada para a memória, parto de imagens fluídas para uma província perdida.

Nove meses de inverno. Três de inferno.
E a primavera?

Bato a porta [sic] abertas. Ninguém responde.
Há colmo caído no chão de sobrado. Azeite vertido, manhuços
intactos.
Corro à fronteira seca e grito. Clamo. Nomes com geada.
Ninguém responde...

E os arados? Os arados deixados às portas das vossas casas, gravados à navalha nas portas das vossas casas?

Se me queres algo
Sal-me al camino.


Ao caminho? Só vejo penedia de chumbo, tresmalhada, estalada,
oh mirandeses !

Corvos. Corvos e águias. Águias e lobos.
E longe, o som de lã de um tamboril... pastora muda chamando o
seu rebanho.

Quedos, quedos, cavaleiros!
El‑rei vos manda contar...


Somos vultos e estamos longe num cavalo tremedal.

Anda daí, se queres benir,
‘garra la capa e bamos.
El camino ié de todos,
la capa ié de nós ambos
.

Mas a terra... quem vai fabricar a terra?
E ainda esta manhã ouvi, em Cércio, a Alvorada!

Tu não ouviste, em Cércio, a Alvorada...
ou cantigas de abaular ; a cantilena da pedra.
Ouviste falar de erva no trigo,
a trovoada
e as pedras dos moínhos a cairem na água.

Deixais só, D. Filomena, com um pente de oiro na mão !

Sonhas...

a D. Filomena é uma nuvem, um polvorinho de folhas.
Quem vês com pentes de oiro na mão? As mulheres vestidas de
negro ? as suas mãos pousadas no regaço têm cartas vindas de França.

Azedões em muralhas. Estevas cobrindo os castros.
Cerâmicas neolíticas na escuridão das grutas.

Em vão os juncos esperam ser cestos. Em vão as ribeiras esperam
as moiras.
Nos olmos cavados não há tentações.

Talvez nos pombais haja amor ainda,
a cal seja um ovo
e o ovo uma ave...

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É xisto de casas que apanho do chão. É uma tábua que prego e
uma candeia que acendo. É uma talha que lavo, uma azeitona que corto.
Um vento que estendo.

É um baldio que escavo. Uma gadanha que afio. Uma encosta
que subo e um tempêro [sic] que lembro.

É uma trança que solto.
Um escano que fecho,
que não vendo,

e uma roca que fio...

ANTÓNIO REIS
Trás‑os‑Montes – Junho de 1969.

[edição no Boletim da Casa Guérin, s.d., facsimilada em
António Reis e Margarida Cordeiro: A Poesia da Terra, Cineclube de Faro, 1997, pp.37‑43]