domingo, 29 de janeiro de 2006

Neva na aldeia

"Só é preciso acreditar", disse o amigo ao Reboliço. Tinha passado o dia inteiro à janela, a ver cair a chuva. Na aldeia, a última vez que fizera um frio assim havia já mais de cinquenta anos. As notícias da hora do almoço diziam que nevara até em lugares perto do mar. Mantinha-se quieto, de focinho encostado à janela, que embaciava de cada vez que o ar quente saía de si. Na cozinha, a tratar das carnes que seriam para a salga do ano, as mulheres passavam com alguidares, travessas e baldes de água quente. Alguns homens estavam lá fora, no casão, de roda do fogo onde grelhavam as febras das refeições e a contar exemplos acontecidos com outros também da aldeia (o João Casca-Grossa e o Lua, dois dos que tinham passado temporadas no Júlio de Matos, protagonizavam o mais hilariante!). À tardinha, o Reboliço ainda não desarmava – a Luísa telefonara a contar como, a meio da tarde, caíra sobre a capital um nevãozinho. "Se está em Lisboa, vem por aí," pensava. Alguém telefonou, já depois do sol-pôr, que nevava em Serpa. O Reboliço agitou-se, armou-se de gorro, cachecol e luvas, e ia de saída, quando o tio chegou e lhe disse "Não precisas de ir a Serpa, já neva na Base de Beja. Não tarda nada, está aqui." Voltou a sentar-se à janela. "Só é preciso acreditar", lembravam-lhe as palavras do amigo. Pois, se era só isso, estava já feito desde manhãzinha. Os outros, na sala, gozavam-no, riam-se da obstinação daquele olhar para a janela, daquele vidro embaciado. Quando a neve caiu, nada mansa, o Reboliço foi ao quintal, deu três ou quatro voltas sobre a cauda, riu-se a mostrar os dentes todos e depois voltou, descansado, para a sala quente e para junto do lume.