Encontrei há dois meses uma carta que escrevi e nunca cheguei a enviar. É um “arquitexto” das minhas anotações de viagens, parece-me. Ontem à noite, inesperadamente, estive nos Artistas e aproveitei a sessão do Ler Alto para a ler em público. Percebi finalmente porque tenho andado com a carta na mala. Ao relê-la, penso de novo em Barcelona. E em Nova Iorque.
“Barcelona, 11 de Agosto de 2002
Estou sentada na varanda da casa dos amigos que me acolheram. Dá para as traseiras de um quarteirão numa zona chamada El Putxet, que quer dizer “a montanhita”, ou “o montezinho”: para nordeste eleva-se um pequeno monte coberto de pinheiros. Passa pouco das oito da manhã, o sol já vai subindo e está quente, ao contrário de ontem. A esta hora, havia nuvens a cobri-lo e nem sequer se lhe adivinhava a presença. Sopra uma aragem, forte às vezes, suavezita a maior parte do tempo. É domingo e o bairro está silencioso. A casa também está em silêncio, os seus donos ainda dormem. Terão sido gaivotas ou corvos, o bando grasnante que passou agora e arrastou atrás de si uma dança de vento? Fecho os olhos, lacrimejantes da força do sol, do branco da página e do movimento mais atrevido do ar. Sinto-me bem. Tem este condão, o sol descoberto. Quando o vento passa com mais força, ouve-se o cair de gotas de água em alguns telhados ou nas persianas da janela – alguém abriu uma, agora mesmo. Foi da chuva que caiu ontem e durante esta noite. A luz é límpida, como é sempre depois de chover. A pele da cara vai-se-me retesando na resposta ao sol, mas sabe bem este calor, esta calma e estar a escrever-te. “As pedras jamais saberão de amores.” E ninguém, se ninguém o disser. Penso muito mais na maneira como terei de dispor o espaço lá em casa. Ah, quando terminar o trabalho que tenho em mãos! – farei uma limpeza geral, deitarei coisas fora, recomeçarei uma vida. Conto só comigo, mesmo se tenho de condicionar os movimentos com o espaço dos outros, com o tempo deles também. Tudo será pesado, até as tuas decisões, a tua vida.
No chão, as sombras da varanda vão-se desviando, muito devagar, para nascente. A janela do quarto onde dormi bateu outra vez, com menos força do que há bocadinho. Ainda me dói o joelho direito, mas não me incomoda muito. Esta manhã voltaremos ao Centro de Cultura Contemporânea, num antigo hospital para mulheres desonradas. É um edifício bonito. Hei-de voltar lá, contigo.
Olho para as minhas unhas, desfeadas de lhes roer as peles, secas pela acção da saliva. Penso no meu cabelo, enfraquecido de não poder deixar de passar a mão por ele. Vou sendo – vou-me transformando naquilo que é o resto do que faço. Trinta e dois anos não tarda nada. Menos sete do que tu, e mais antiga. Menos forte. Não mudará nada – em mim, como diria a poeta. É espantoso, como o céu se limpou desde ontem. Tocou o sino de uma igreja. O sol está ainda mais forte, terei que abrigar-me. Olho mais uma vez para as mãos e decido parar aqui.”
“Barcelona, 11 de Agosto de 2002
Estou sentada na varanda da casa dos amigos que me acolheram. Dá para as traseiras de um quarteirão numa zona chamada El Putxet, que quer dizer “a montanhita”, ou “o montezinho”: para nordeste eleva-se um pequeno monte coberto de pinheiros. Passa pouco das oito da manhã, o sol já vai subindo e está quente, ao contrário de ontem. A esta hora, havia nuvens a cobri-lo e nem sequer se lhe adivinhava a presença. Sopra uma aragem, forte às vezes, suavezita a maior parte do tempo. É domingo e o bairro está silencioso. A casa também está em silêncio, os seus donos ainda dormem. Terão sido gaivotas ou corvos, o bando grasnante que passou agora e arrastou atrás de si uma dança de vento? Fecho os olhos, lacrimejantes da força do sol, do branco da página e do movimento mais atrevido do ar. Sinto-me bem. Tem este condão, o sol descoberto. Quando o vento passa com mais força, ouve-se o cair de gotas de água em alguns telhados ou nas persianas da janela – alguém abriu uma, agora mesmo. Foi da chuva que caiu ontem e durante esta noite. A luz é límpida, como é sempre depois de chover. A pele da cara vai-se-me retesando na resposta ao sol, mas sabe bem este calor, esta calma e estar a escrever-te. “As pedras jamais saberão de amores.” E ninguém, se ninguém o disser. Penso muito mais na maneira como terei de dispor o espaço lá em casa. Ah, quando terminar o trabalho que tenho em mãos! – farei uma limpeza geral, deitarei coisas fora, recomeçarei uma vida. Conto só comigo, mesmo se tenho de condicionar os movimentos com o espaço dos outros, com o tempo deles também. Tudo será pesado, até as tuas decisões, a tua vida.
No chão, as sombras da varanda vão-se desviando, muito devagar, para nascente. A janela do quarto onde dormi bateu outra vez, com menos força do que há bocadinho. Ainda me dói o joelho direito, mas não me incomoda muito. Esta manhã voltaremos ao Centro de Cultura Contemporânea, num antigo hospital para mulheres desonradas. É um edifício bonito. Hei-de voltar lá, contigo.
Olho para as minhas unhas, desfeadas de lhes roer as peles, secas pela acção da saliva. Penso no meu cabelo, enfraquecido de não poder deixar de passar a mão por ele. Vou sendo – vou-me transformando naquilo que é o resto do que faço. Trinta e dois anos não tarda nada. Menos sete do que tu, e mais antiga. Menos forte. Não mudará nada – em mim, como diria a poeta. É espantoso, como o céu se limpou desde ontem. Tocou o sino de uma igreja. O sol está ainda mais forte, terei que abrigar-me. Olho mais uma vez para as mãos e decido parar aqui.”