quinta-feira, 15 de junho de 2006

Corpo de Deus

Em Roma, nos anos iniciais do século XVIII, a Igreja decretou e zelou por uma forte censura a qualquer acto de entretenimento público: teatro e ópera eram proibidos, numa atitude censória que já ditara desde 1588, por exemplo, que não haveria mulheres no palco das óperas – o que levou ao florescimento dos castrati. Georg Friedrich Händel, o “querido saxão”, foi um dos muitos compositores em Roma que continuou a escrever a sua obra, quer para a Igreja quer para o entretenimento privado da nobreza. Em Il Trionfo del Tempo e del Disinganno (1707), um oratório de pendor moralista, a personagem do Prazer canta estes versos (o libretto é do cardeal Benedetto Pamphilj):

Lascia la spina,
Cogli la rosa;
tu vai cercando
il tuo dolor.
Canuta brina,
Per mano ascosa
Giungerà quando
Nol crede il cor.

(Malamente traduzido, será: Deixa os espinhos, colhe a rosa; andas em busca da tua dor. Uma mão oculta te trará as cãs sem que o teu coração disso dê conta.)

Em 1710, no mesmo ano em que em Roma se recomeça a permitir a encenação e a apresentação pública de óperas, Händel vai para Londres. Conta-se que o sucesso que teve em Inglaterra se deveu ao arrojo das suas soluções cénicas e à ousadia dos poemas. A mesma ária musical que usara quatro anos antes no oratório Il Trionfo... torna-se, no Rinaldo, a primeira ópera londrina de Händel, isto (libretto de Giacomo Rossi a partir de uma adaptação de Jerusalém Libertada, de Torquato Tasso):

Lascia ch’io pianga
La cruda sorte
E che sospiri
La libertà!
Il duolo infranga
Queste ritorte
De’ miei martiri
Sol per pietà

(Ora veja-se: Deixa que chore a cruel sorte e que suspire por liberdade! A dor que rompa estas cadeias de meus martírios, só por piedade.)

O Reboliço, a quem o barroco sempre seduziu, está meditativo: contradições de uma época de “experiências do irreconciliável”? Ou os eternos contrários que nos fazem ainda ter feriado para celebrar a materialidade de um divino incorpóreo?