Então, sentou-se na cama. E, à falta de um ouvido humano - ouvido silencioso, que não o julgasse, não lhe fizesse perguntas e se limitasse, isso sim, a escutar com toda a atenção possível -, ditou para o bloco de folhas. Sabia que a caneta tinha pouca tinta. Sabia que escolheria mal as palavras; que buscaria nelas a clareza, a nitidez que nelas amava, mas cuja luz precisa haveria de cegar o emaranhado de tudo.
Lembrou-se de imagens, de partes de dias. De uma vez em que seguira alguém, num autocarro de subúrbio, e acabara a entregar em beijos a vida que lhe sobrava. De uma vez em que alguém se despedira de si com a calma do reencontro e a certeza da última conversa. De algumas vezes em que o amor soçobrara à raiva, às ganas do que os dias não deixam ser. Lembrou-se disso e recordou a proximidade que vira entre o desespero mais arrepiante e a euforia de se sentir vivo. Como se um nascesse do outro.
(17 de Janeiro de 2006; recordado este sábado.)