quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

SOBRE O PRODUZIR PENSAMENTO À MEDIDA QUE SE FALA (I)

(Isto ainda há-de ser para corrigir. E há-de ir em três partes. O título do post é o título que Kleist deu ao ensaio.)

"Sempre que haja alguma coisa que queiras saber e pelo meditar não o consigas, o conselho que te dou, engenhoso e velho amigo, é que converses sobre o tema com o primeiro conhecido que encontres. Não terá de ser particularmente perspicaz, nem te digo que lhe peças a opinião, nada disso. Pelo contrário, deverás tu dizer-lhe de imediato o que é que queres saber. Vejo espanto no teu rosto. Ouço-te replicar que, em pequeno, te ensinaram a falar apenas daquilo que já entendesses. Nessa altura, porém, sem dúvida que te referias à educação dos outros - mas o meu desejo é que fales na sensata intenção de te educares a ti mesmo; assim, como se aplicam regras diferentes em circunstâncias diferentes, talvez se permita que sejam válidas as duas. Dizem os franceses que 'l'appétit vient en mangeant' e a máxima é igualmente verdadeira se a transformarmos em 'l'idée vient en parlant'. Quantas vezes já me sentei à secretária, perante documentos de algum caso difícil, e busquei o ponto de vista a partir do qual o tentasse agarrar. O meu hábito na altura, nesta ânsia do meu mais profundo ser pelo esclarecimento, é olhar para o candeeiro, como se olhasse para o ponto mais brilhante. Ou, se me ocorre um problema de álgebra e preciso de encontrar um ponto de partida, tenho de possuir a equação que exprima as relações determinadas e a partir das quais, por cálculo simples, possa encontrar a solução. Agora, pasma! Se disto falar com a minha irmã, sentada na mesma sala com o seu trabalho, aprenderei mais do que aquilo que talvez obtivesse depois de matutar horas a fio. Não significa que ela mo diga, de facto, pois não conhece o Código Penal, não estudou Euler nem Kästner. Nem sequer é por fazer perguntas inteligentes que me conduz ao centro da questão, embora muitas vezes, atrevo-me a dizer, isso deva ser feito. Mas porque possuo uma ideia vaga logo à partida, relacionada de longe com aquilo que ando a procurar, se me atrever a começar com ela, o meu pensamento, à medida que prossegue o meu discurso e pela necessidade de encontrar um fim para tal começo, dará forma à minha ideia inicialmente confusa e torna-la-á completamente clara; de tal maneira que, para meu espanto, atingirei a compreensão assim que chegar ao final da frase. Acrescento alguns sons desarticulados, demoro-me nas conjunções, talvez faça uso de aposições sempre que seja necessário, e posso recorrer a outros truques que agilizarão o discurso, tudo para ganhar o tempo de fabricar a minha ideia na oficina do pensamento. E, neste processo, nada me ajuda mais do que se a minha irmã fizer um movimento como se se preparasse para me interromper: tal tentativa, vinda do exterior, de arrebatar o pensamento àquilo a que se agarra excita ainda mais a minha ideia já de si muito trabalhada e, como um general em circunstâncias extremas, o seu poder eleva-se a um grau ainda maior. Para isto é que, no meu entender, Molière usava a sua criada; permitir que ela corrigisse com o seu o pensamento dele implicaria uma humildade de que desconfio ele não ter sido possuidor. Ė uma coisa estranhamente inspiradora ter à nossa frente um rosto humano enquanto falamos; muitas vezes, o olhar que anuncia que um pensamento meio exprimido já foi entendido dá-nos a expressão da metade que falta. Acredito que muitos grandes pensadores desconheciam, no momento de abrir a boca, o que iriam dizer. Mas a convicção de que seriam capazes de extrair todas as ideias necessárias das próprias circunstâncias e da excitação mental que gerariam deu-lhes a coragem para confiar na sorte e começar."

Heinrich von Kleist, escrito provavelmente entre 1805 e 1806. Publicado pela primeira vez em 1878. A versão inglesa que usei está neste livro; a castelhana, neste. Tradução: AIS.

(A meio da tradução, passeio pela blogosfera e encontro isto. Tinha de comentar...)