"Penso no 'trovão' com que Mirabeau dispensou o Mestre de Cerimónias que, a seguir ao último Conselho monárquico de 23 de Junho, em que o Rei ordenara a dispersão dos Estados, regressou à sala onde ainda estavam reunidos e lhes perguntou se tinham ouvido a ordem do Rei. 'Sim', respondeu-lhe Mirabeau, 'ouvimos a ordem do Rei.' Tenho a certeza que, ao começar assim de modo tão cordial, não pensara ainda nas baionetas com que haveria de terminar. 'Sim, meu senhor', tornou, 'ouvimos as ordens' - vê-se que ainda não está muito certo do que pretende. 'Mas com que direito', continuou, e subitamente abre-se-lhe uma torrente de ideias monstruosas, 'nos vem o senhor dar as ordens? Nós representamos a Nação.' Era disso que precisava! 'A Nação dá ordens, não as recebe' - o que o impele, ali e naquele momento, ao máximo da ousadia. 'E para me fazer completamente claro' - e só então encontra palavras para expressar toda a força da sua alma e a sua capacidade de resistência: 'Ora diga ao seu Rei que daqui não iremos a lugar nenhum senão a toque de baionetas.' - Após o que, satisfeito consigo mesmo, se sentou. - Quanto ao Mestre de Cerimónias, teremos que o imaginar em completa bancarrota espiritual por este encontro de ideias. Existe uma lei que se aplica, muito semelhante àquela segundo a qual, se um corpo sem electricidade própria entra no ambiente de um corpo electrificado, de imediato a electricidade do último carrega o primeiro. E tal como, no corpo electrificado, por efeito recíproco ocorre um reforço da electricidade inata, assim a confiança do nosso orador, ao aniquilar o seu oponente, se converteu numa ousadia inspirada e extraordinária. Visto desta maneira, talvez tenha sido um franzir de lábios ou um ambíguo ajeitar dos punhos de uma camisa que conduziu à alteração do estado de coisas em França. Sabe-se que, mal o Mestre de Cerimónias se retirou, Mirabeau se ergueu e propôs: 1) que logo ali se constituísse uma Assembleia Nacional e 2) que fosse declarada inviolável. Depois de, como uma garrafa de Leyden, se ter descarregado, Mirabeau ficou de novo neutro e, regressado da ousadia, cedeu o passo à precaução e ao medo de Châtelet. - Eis uma correspondência notável entre os fenómenos do mundo físico e os do mundo moral, que, levada aos extremos, se manteria mesmo nas circunstâncias mais insignificantes. Mas deixo agora a minha comparação e regresso ao ponto em causa. Também La Fontaine, na sua fábula 'Les animaux malades de la peste', em que a raposa é obrigada a justificar-se ao leão e não sabe a que há-de recorrer, nos dá um exemplo importante da produção gradual do pensamento a partir de um impulso provocado pela pressão. A fábula é conhecida. Grassa a peste entre os animais, o leão convoca os maiores do reino e informa-os de que, para aplacar os céus, deverá oferecer-se um sacrifício. Sendo muitos os pecadores entre eles, os maiores deverão salvar os restantes da destruição. Para tal, pede-lhes que confessem o mais sinceramente que possam os seus pecados. Pela sua parte, admite que, por força da fome, já reduziu vidas de muitas ovelhas; de cães também, quando lhe chegam demasiado perto; até, em momentos deliciosos, chegou a comer o pastor. Se ninguém acusa fraquezas piores do que aquelas, então ele, o leão, de bom grado morrerá. 'Senhor', diz a raposa, ansiosa por afastar de si mesma a tempestade, 'foste longe demais no vosso zelo e generosidade. Que mal há em teres morto uma ou duas ovelhas? Ou um cão, essa vil criatura? E: quant au berger', continua, pois é esse o seu trunfo, 'on peut dire', ainda que não saiba o quê, 'qu'il méritoit tout mal', confiante na sorte e com isso já se enredando, 'étant', palavra pobre, mas que a faz ganhar tempo, 'de ces gents là', e só então chega à ideia que a livra de apuros, 'qui sur les animaux se font un chimérique empire.' - E prossegue, até provar que o burro, o asno sequioso por sangue (devorador de ervas e outras plantas) é o mais adequado ao sacrifício. Posto o que, todos se atiram ao animal e o despedaçam. - Tal discurso não é mais do que pensamento em voz alta. A sucessão de ideias e os signos delas prosseguem lado a lado e convergem os actos mentais implicados por umas e por outros. Então, o discurso não é de maneira nenhuma impedimento; não é, como se poderia dizer, um travão da mente, mas antes uma segunda roda a girar paralela sobre o mesmo eixo.
(Tradução: AIS. A terceira e última parte está aqui. A sintaxe, por vezes estranha, é marca de Kleist.)