segunda-feira, 16 de março de 2009

O Reboliço é um nefelibata (4)


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Disponho do vento disponho do sol disponho da árvore

................arranjo pássaros arranjo crianças
................tenho mesmo à minha disposição o mar
................talvez com tudo isto possa formar uma tarde
................uma tarde azul e calma onde me possa refugiar
................Mas e as ideias as doutrinas os problemas?
................Se nem resolvi ainda o problema da unha do dedo mínimo
................como pretender ter resolvido o mínimo problema?
................E as ideias, que só servem para dividir?
................As ideias têm húmeros inúmeros
................e é difícil caminhar no meio da multidão
................Podia dizer (mas não me deixa descansado):
................Sou novo. Tenho por isso a razão pelo meu lado
................Deixai os pássaros cantar as crianças brincar
................o tempo não urge o coração não arde
................Quem sou eu? Eu só e minha tarde
................As crianças com as suas vozes brancas
................riscam alegremente o céu azul
................passam as aves em seu voo rasante
................desde sá de miranda até jorge de sena
................E o tempo passa assim. Sou eu e o passado
................Era novo. Não tenho a razão pelo meu lado

Ruy Belo, "A minha tarde"
(Obra Poética 1, Editorial Presença,
1981, p. 152.)


(Foto: Reboliço num amanhecer outonal no Alto Alentejo.
O céu limpo de hoje - há o vento, há o vento que varre - dá-lhe saudades das nuvens.)