.....À volta do moinho há agora uma parte de terra lavrada, onde nasce ou trigo ou girassóis, conforme o ano e a sementeira, e uma parte, gradeada, de exposição de tractores e outras máquinas de lavoura: brilhantes, coloridas, mas feias no meio daquilo que era um vazio de torrões intercalado no ano com a cor seca do cereal ou o vivo amarelo das flores do girassol. Houve, hoje já não está lá, um alto de terra no meio da terra, um lugar de poço disfarçado, ou furo de água, para onde não nos deixavam ir em pequenos, que era perigoso. Um poço sem vedação, sem muro, nada.
.....Quando morreu o Lobito, o cão de guarda do moinho, grande, da cor do fogo já a esbranquiçar, estava o Reboliço a entrar na meia idade. O avô foi enterrar o cão grande lá para as bandas dessa zona proibida, distante da casa e do moinho. O Reboliço não andava nunca para aqueles lados, nem conhecia a terra que rodeava o moinho. O mundo que não fosse o do seu pensamento e o das pedras da calçada que o avô fizera para amansar o passo entre a casa e o moinho, o mundo que saísse da zona da figueira grande e do socalco até à casa do motor, o chão que ficava por baixo das nuvens que contemplava dia e muitas noites aluado, não era mundo que atiçasse a curiosidade do canito da casa.
.....Dava-se com o Lobito o mínimo. Mal se falavam: fosse pelas diferenças de tamanho, extensão de pêlo ou barbas no focinho, os dois eram quase desconhecidos. Não cismava o Lobito em que o outro vivesse debaixo de telha e ele quase não - o seu orgulho era guardar o moinho, a parede redonda que a barra azul sustentava até ao topo de onde vigiava o Rafael. Não cismava o Reboliço em que o outro tivesse a parte de lobo nas refeições, os ossos maiores ou a malga de água mais cheia. Para si eram as bolachas maria pela fresca, o olhinho de sol despreocupado, o canto quente do borralho que gato nenhum habitava, as graças do dono.
.....Quando o Lobito morreu, portanto, o avô meteu-o numa das sacas velhas que já não davam para segurar a farinha e foi, sozinho, enterrar o bicho nos confins daquela terra desconhecida. Para o Reboliço, o cão grande desapareceu de vista, deixou de estar de sentinela no cimo do socalco à calma e ao frio. Na manhã seguinte à do enterro, o avô esperou pelos bons dias da esquilinha à porta do quarto. Quando se cansou de esperar, aviou-se para o dia: lavou-se na água de alecrim, tomou café com o bolo da massa de pão, ouviu as notícias no rádio, atrás do barulho da bateria que o alimentava, e perguntava-se, "Onde andará o diacho do cão?" Lidou o dia todo: aviou fregueses, amanhou bocados da horta, arrumou e desarrumou sacas, falou com o vizinho, falou com a mulher, fez contas às facturas. Quando o sol desceu, meteu-se em casa. Viu a telenovela da noite, de cabeça deitada sobre a mesa, como se estivesse a ouvir o folhetim do rádio porque não lhe diziam grande coisa as imagens e faziam-no franzir demais os olhos, só alumiados pela luz fraca do candeeiro a petróleo. Veio o sono e foi dormir. Na manhã a seguir, nada de Reboliço. Começou a apoquentar-se: "Ora esta..." Abalou para a lida, depois de lavado e comido, e andou naquilo, como sempre, sem dar pelas horas e fazendo delas só o marca-passo das refeições. Anoiteceu e o Reboliço voltou a não dormir em casa. Quando o avô comentou o caso com a avó, disse-lhe ela que andaria "por ali," que era o costume dos animais. A avó dava de comer aos bichos, galinhas, gatos bravos e cães, indistintamente.
.....Como não lhe aparecesse para reclamar a bolacha maria da manhã seguinte, a terceira falta, o avô decidiu ir procurá-lo. Agarrou no boné cinzento e no cajado e abalou pela estrada de terra. Foi pelo lado sul, o mesmo caminho que tinha feito uns dias antes para deixar o corpo do Lobito. À medida que se aproximava, viu um vulto miúdo - que foi ganhando corpo e apareceu, quando o cajado parou, como o cão da casa em pose de guarda, as patas da frente dobradas sob o peito, todo o corpo deitado e só a cabeça em sentido, sobre o montículo recém mexido da terra.
(Esta história andava já para ser escrita há muito tempo. Veio agora, a propósito disto - obrigada, Carla - e vai dedicada à Sem-Se-Ver e à Cris.)
.....Quando morreu o Lobito, o cão de guarda do moinho, grande, da cor do fogo já a esbranquiçar, estava o Reboliço a entrar na meia idade. O avô foi enterrar o cão grande lá para as bandas dessa zona proibida, distante da casa e do moinho. O Reboliço não andava nunca para aqueles lados, nem conhecia a terra que rodeava o moinho. O mundo que não fosse o do seu pensamento e o das pedras da calçada que o avô fizera para amansar o passo entre a casa e o moinho, o mundo que saísse da zona da figueira grande e do socalco até à casa do motor, o chão que ficava por baixo das nuvens que contemplava dia e muitas noites aluado, não era mundo que atiçasse a curiosidade do canito da casa.
.....Dava-se com o Lobito o mínimo. Mal se falavam: fosse pelas diferenças de tamanho, extensão de pêlo ou barbas no focinho, os dois eram quase desconhecidos. Não cismava o Lobito em que o outro vivesse debaixo de telha e ele quase não - o seu orgulho era guardar o moinho, a parede redonda que a barra azul sustentava até ao topo de onde vigiava o Rafael. Não cismava o Reboliço em que o outro tivesse a parte de lobo nas refeições, os ossos maiores ou a malga de água mais cheia. Para si eram as bolachas maria pela fresca, o olhinho de sol despreocupado, o canto quente do borralho que gato nenhum habitava, as graças do dono.
.....Quando o Lobito morreu, portanto, o avô meteu-o numa das sacas velhas que já não davam para segurar a farinha e foi, sozinho, enterrar o bicho nos confins daquela terra desconhecida. Para o Reboliço, o cão grande desapareceu de vista, deixou de estar de sentinela no cimo do socalco à calma e ao frio. Na manhã seguinte à do enterro, o avô esperou pelos bons dias da esquilinha à porta do quarto. Quando se cansou de esperar, aviou-se para o dia: lavou-se na água de alecrim, tomou café com o bolo da massa de pão, ouviu as notícias no rádio, atrás do barulho da bateria que o alimentava, e perguntava-se, "Onde andará o diacho do cão?" Lidou o dia todo: aviou fregueses, amanhou bocados da horta, arrumou e desarrumou sacas, falou com o vizinho, falou com a mulher, fez contas às facturas. Quando o sol desceu, meteu-se em casa. Viu a telenovela da noite, de cabeça deitada sobre a mesa, como se estivesse a ouvir o folhetim do rádio porque não lhe diziam grande coisa as imagens e faziam-no franzir demais os olhos, só alumiados pela luz fraca do candeeiro a petróleo. Veio o sono e foi dormir. Na manhã a seguir, nada de Reboliço. Começou a apoquentar-se: "Ora esta..." Abalou para a lida, depois de lavado e comido, e andou naquilo, como sempre, sem dar pelas horas e fazendo delas só o marca-passo das refeições. Anoiteceu e o Reboliço voltou a não dormir em casa. Quando o avô comentou o caso com a avó, disse-lhe ela que andaria "por ali," que era o costume dos animais. A avó dava de comer aos bichos, galinhas, gatos bravos e cães, indistintamente.
.....Como não lhe aparecesse para reclamar a bolacha maria da manhã seguinte, a terceira falta, o avô decidiu ir procurá-lo. Agarrou no boné cinzento e no cajado e abalou pela estrada de terra. Foi pelo lado sul, o mesmo caminho que tinha feito uns dias antes para deixar o corpo do Lobito. À medida que se aproximava, viu um vulto miúdo - que foi ganhando corpo e apareceu, quando o cajado parou, como o cão da casa em pose de guarda, as patas da frente dobradas sob o peito, todo o corpo deitado e só a cabeça em sentido, sobre o montículo recém mexido da terra.
(Esta história andava já para ser escrita há muito tempo. Veio agora, a propósito disto - obrigada, Carla - e vai dedicada à Sem-Se-Ver e à Cris.)