sexta-feira, 26 de março de 2010

Laboratório de sonhos

Mesmo quando está a entrar no relato que o há-de de envolver a ele e aos seus companheiros a bordo do Nellie, como a escuridão da noite sobre o Tamisa, Marlow suspende a voz e hesita na narrativa, como se se sentisse incapaz de continuar a contar o que se passou na sua viagem pelo Congo:

     It seems to me I am trying to tell you a dream - making a vain attempt, because no relation of a dream can convey the dream-sensation, that commingling of absurdity, surprise, and bewilderment in a tremor of struggling revolt, that notion of being captured by the incredible which is of the very essence of dreams.*

A vacuidade da tentativa, apesar de tudo, não o impede de contar - de tentar contar. É muito forte o impulso de trazer para fora e dar a conhecer - a quem ouve, mas sobretudo a quem conta - aquilo que é o vago de um sonho. Que se diz em frases como "era como se fosse um goivo, mas tinha a corola de um amor-perfeito", ou "eu sabia que eras tu, mas a tua cara era a de uma tia-avó que nunca conheci". Um laboratório de sonhos só pode ser uma fábrica de literatura imperfeita, uma caixa postal de que ninguém conhece chave nem sequer fechadura.

* Em português, na versão de Teresa Amaro, ficou: "Parece-me que estou a tentar contar-lhes um sonho - uma tentativa vã, porque o relato de um sonho não pode transmitir aquela sensação de sonho, aquela mescla de absurdidade, surpresa e complexidade, aquela sensação de sermos capturados pelo inacreditável que é a própria essência dos sonhos." (O Coração das Trevas, Edição MilFolhas, Público, Lisboa, 2004, p. 43. Logo acrescento a versão de Aníbal Fernandes - é capaz de não ter "absurdidade" nenhuma.)