terça-feira, 12 de abril de 2011

PASTELARIA

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
– ele há tanta maneira de compor uma estante

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

(Mário Cesariny, Nobilíssima Visão, Guimarães & C.ª Editores, Lisboa, 1975, 2ª. edição, que inclui "só os poemas escritos sob esse título em 1945-46, anos que correspondem a uma leitura do 'país real' topado pelo autor à saída da adolescência linda mas já desconfiada da terra em que assentara os seus projectos de poesia civil: lírica, inocente: dramática.", pp. 18-19.)