segunda-feira, 4 de julho de 2011

"A dog's life - Charlie Chaplin (1919)"

1.
Charlie Chaplin, nosso Deus e Senhor, criador de todos
os gags, vendo a nossa rigidez, a nossa militância
nas fileiras do orgulho, enviou-nos o Seu Filho bem
amado, a fim de nos salvar da parvoíce, libertar-nos
da empáfia, pondo à prova a nossa agilidade,
a nossa paciência. Servindo-se de gestos, de cinéticos
enredos, quase sem palavras, Charlot desceu à terra
e pregou pelo exemplo. Assumindo mil disfarces
e parábolas, perseguiu-nos com amor, padeceu no surdo
gelo da nossa indiferença, mostrou-nos com que modos
se suportam os maus tratos, instou-nos a romper
com o barril das enteléquias. Não é um deus de amor,
mas de conflito, o nosso Charlie. Por isso é que
Seu Filho nos soterra sob sacos de centeio, nos derruba
de escadotes, nos atira com tijolos e com tartes,
ananases aguçados; por isso nos abate com tábuas e
martelos, ou nos bole com os nervos nas portas giratórias
dos hotéis. Charlie sabe como a dor nos acrescenta,
sobrepondo novos pisos à morada interior, elevando
o sentimento à dimensão da piedade. Por isso é que
Seu Filho veio a nós, neste século de trevas, disfarçado
de ninguém e decido a instalar a confusão por onde
passa. Pois só da confusão pode nascer a liberdade.


2.
Sabei que Charlot, o nosso Salvador, abomina
sobretudo a servidão. Um só mandamento
exprime a sua doutrina: Não te prendas ao pesado.
Que significa, Não te prendas ao pesado?
Significa: Aceita a mudança e livra-te
de converter em velório o festival dos acidentes.
A vida é uma torrente de oportunidades: moeda
no chão, cigana bonita, perna de presunto,
um par de patins. Atentem nestes exemplos,
concedidos pelo nosso Salvador, e compreendam
que não é nos grandes mas nos pequenos lances
que a vida se joga e se transforma e retribui.
A desmesura é o pecado dos pacóvios.
Se o almoço te trouxe meias-solas, alegra-te
primeiro porque não as roubaste a um mais pobre
do que tu; alegra-te segundo porque foram
de graça, e só o que é de graça tem autêntico
sabor; alegra-te terceiro porque a tarde está de sol,
ou de chuva ou de neve, e nada é importante,
nada é decisivo. Neste circo dos graves,
neste palco rotativo, ri melhor quem ri a fundo
e por mais tempo. Até que a morte, de bigodes
retorcidos, nos apanhe e nos aparte do sorriso,
nos expulse do vestíbulo, nos corra a pontapé,
nos desfaça na cabeça o violino.
(José Miguel Silva, 2005. Achado nos Achaques, inédito fora da rede. Obrigada, JMS.)