terça-feira, 26 de julho de 2011

Moinhos na poesia (36)

"Moinho"

Tantos pintores

A realidade comovida agradece
mas fica no mesmo sítio
(daqui ninguém me tira)
chamado paisagem

Tantos escritores

A realidade comovida agradece
e continua a fazer o seu frio
sobre bairros inteiros, na cidade, e algures

Tantos mortos no rio

A realidade comovida agradece
porque sabe que foi por ela o sacrifício
Mas não agradece muito

Ela sabe que os pintores os escritores e quem morre
não gosta da realidade
Querem-na, para um bocado
Não se lhe chegam muito - pode sufocar

Só o velho moinho do acordeão da esquina
rodado a manivela de trabuqueta
sem mesura sem fim e sem vontade
dá voltas à solidão da realidade.

(Mário Cesariny de Vasconcelos, Diário de Notícias, 16 de Julho de 1964. Re-publicado em Poesia Portuguesa do Pós-Guerra 1945-1965, antologia organizada por Afonso Cautela e Serafim Ferreira, Lisboa, Editora Ulisseia, 1965, p. 329.)