quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Do pai

No Domingo passado o pai fez 72 anos. O Reboliço passou o dia com os olhos numa fotografia que mostra dois pais: o avô Chico, sentado num dos degraus de pedra do sopé do moinho, a olhar para um lado; e o pai Chico, moço novo, nem vintaninhos ainda, sentado acima dele, no chão do sopé, a olhar para outro. Atrás dos dois está o moinho, de velas armadas. Talvez tenha sido feita pela altura em que o pai Chico presenciou o fenómeno que conta no relato que aqui se publica agora e a que chamou, muito singela e certeiramente, "A Castanha."


A Castanha

  O carrego do trigo para o moinho era feito num carro de besta só. Nos meus tempos de juventude, na metade da década de 50 do século passado, a carroça era puxada por uma mula pequena a que chamavam a Castanha, devido à cor do pêlo da bicha. O animal era danado para puxar o carro carregado de sacos de trigo. Muitas vezes carregava dez sacos de 60kg cada. No Inverno, muito embora não levasse essa carga toda, as rodas do carro afundavam-se no barro do caminho e a boa da Castanha, abanando as orelhas, com o dono ao lado agarrado a um dos varais do carro, animando-a, lá conseguia levar a carga até ao moinho.
  Um dia de Primavera, de manhã, com o céu completamente limpo, sem uma nuvem e com uma leve aragem, estava eu a pôr-lhe o cabresto, ao portão da cavalariça, notei que o animal estava demasiado quieto para o seu temperamento, algo esquivo quando se lhe metia o cabresto. Reparei nas orelhas muito afitadas, como quando presta atenção a qualquer coisa estranha. Então, olhei na direcção para onde olhava a Castanha e vi muito ao longe, a Noroeste, um pequeno e estranho ponto escuro, sobre o horizonte.Fiquei intrigado mas não liguei - e continuei a meter o cabresto na mula.
  Voltei a olhar o tal ponto e surpreendi-me ao ver que tinha aumentado bastante. Mantive-me a olhar e vi como que uma nuvem, ainda muito distante, com um movimento esquisito! Continuamos a olhar, eu e a mula, para aquela nuvem a aproximar-se, a aumentar e a ondular, ora subindo ora descendo. Só pode ser um bando de pássaros, pensei - mas que pássaros? Já nas proximidades do monte, apercebi-me finalmente tratar-se de uma nuvem imensa de pombos bravos (torcazes): milhares e milhares de aves como nunca até então tinha visto e nunca mais voltei a ver. Levaram alguns minutos a passar, de Noroeste para Sueste. Numa das ondulações em que baixaram e se aproximaram mais donde observava, ouviu-se um rumor como de uma grande enxurrada, tamanho era o barulho de tantas asas.
  Ainda hoje me espanta o facto de a Castanha se ter apercebido de que aquele pequeno ponto longe no  horizonte, onde fixou a sua atenção, era realmente coisa invulgar naquelas paragens.

Beja, 22 de Novembro de 2011
Chico Soares