domingo, 8 de janeiro de 2012

Água

O Reboliço vê escorrer da torneira um fio de água, ouve-lhe o gorjeio vertical, e pensa. Pensa que há uns anos, quando não ouvia falar em escassez, cada vez que via abrir uma torneira era como se assistisse a uma ocasião ritual: não mais do que aquele fio, o fio bastante para o balde, para a cafeteira, para os dedos de uma mão. Dentro da casa da aldeia não havia canalização: os banhos eram fora, numa casinha do quintal; para o resto que na casa se fazia com água - o comer, o lavar a loiça, o encher a panela de ferro ao lume - tinha que se ir buscar água à torneira do quintal, o extremo de um tubo levantado do chão, rente à parede pouco mais de um metro, com uma pia de pedra cor de barro encarnado no solo e com um buraquinho redondo no meio. Se o que vinha recolher a água fosse balde ou garrafão, era no chão que ficava - o garrafão um desafio de acertar a linha da água na entrada estreita e distante do gargalo; o balde uma piscina onde se criavam rodelas de líquidas rugas, de onde os salpicos, que enfeitiçavam, faziam ouvir de dentro "Olha ao que estás a fazer, não me desperdices a água!" Não era considerado um bem escasso, não pedia campanhas de poupança. Era desde sempre uma preciosidade, uma ocasião, o convívio com um ser que agradecia ter sido, pela brevidade de uns segundos, libertado.