quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Bastardo



«Garrafa de cerveja no pedestal da estátua!
Isto Fritz, é a era, o hoje frente ao passado:
Contemporâneo». E a paixão permanece.
Em vez de acções, aromas. Quartos, em vez de crónicas.


Ezra Pound


Há um sino que se alonga, se espreguiça,
alargando a hora em que deixas o quarto
e sais a raspar a pele húmida de sono,
oferecendo o corpo a ângulos mais
salientes. Passos que avançam em
meandros de chuva
, por ruas líquidas
ao sabor de uma luz vacilante. O vento
arrasta desde tempos sérios, antigos,
ordens enrouquecidas. Belisca, deixa-te
em sentido. Um enredo de sombras
dá-te cerco. Por cima é um bando
de estrelas que vão apostando entre si
que caminho levas hoje. Como
uma rima perdida, tens à perna
o cão do acaso, que te salva o traçado
alçando a pata em cada esquina.

E aí tens a esplanada-café-bar-buraco
onde leste noites e noites, onde deste alimento
à rosa desse pensamento decaído e infecto,
sangrando baixinho. Nem vermelha, nem
branca, mas uma cor intermédia a tudo.
Os versos, essa narrativa às cegas, bebendo
o tom das coisas, fixando-se em
pormenores onde pulsa um ardor de fantasia.
Já tens ouvido queixas. Que são longos
estes poemas, e depois nem têm
para onde ir. Realmente, não têm.
Também procuram não ter ilusões.

Quietos, revistados de cima a baixo,
é com gosto que nos deixamos roubar.
Uma canção que nos vira os bolsos e dos
trocos vai juntando um corpo, alegre-
-ardiloso. Estranho lucro que tiramos
repetindo furiosamente os mesmos lugares,
noite após noite, quase gemendo
de solidão. Senta-se diante de ti
sem desculpa nenhuma, sem nada
que fragilize o assombro daqueles
dois olhos escuríssimos, bem abertos.
Põe sobre o sorriso o copo, sorve um nada
de vinho e chega-se num beijo, empurrando
um gole de ambrósia. Semidesperto,
soluças, ris-te, recompões-te, dás outra moeda
à máquina e ela inventa outra coisa.

Sob a teatral e débil iluminação, uma gente
ilustrada que se perde em fundo. Flores
de fumaça, o odor frio e bolorento,
ecos inquietantes, moscas
levando notícias. Histeria, confissões
de trincheira, o riso frouxo de ventres
mortos
. Restos do dia. Uma aridez
perturbadora e a surda zoada
de um velho que te exaspera a audição
até uma afinação doentia. Alados-de-horror,
reúnem-se personagens de uma só
fala, estudando mil intenções possíveis
e projecção de voz, um jeito qualquer
de roubar a cena com esses farrapos
de frases, gestos sem sequência,
o sorriso pisado de quem delira mais
do que acredita.

A uns passos dali, um jardim fantasma
onde atracam os navios que cruzam
este mar de mijo português. Sol e lua
misturados numa agulha, uma gota
de infinito tropeçando no sangue. Galáxias
desaguando devagarinho, adoçando-o.
E as pulsações seguintes: fracas,
doces. Nem a respiração se defende.
A certa altura deixas de dar por ti.

Tudo em volta cresce de tom e escuta-se
o toque impreciso que desperta a flor-farol
dos que aqui estamos à espera da aurora
e da próxima aurora, juntando noites
suficientes para pagar um novo dia.



Diogo Vaz PintoBastardo,
Lisboa: Averno, 2012.
Ilustrado, na versão ante-papel, por Inês Dias.