quinta-feira, 26 de junho de 2014

"Fronteira"


As flores pelo chão
Pisadas desde o baile,
O vento frio,
Só mulheres de xaile:
Tudo me contaram
Quando eu dei aos ares de Espanha
Uns desceram para Sul
Eu fiquei a ver Idanha.

Ai de mim, não faço nem ideia -
Prometi partir na lua cheia.
Páro p'ra um bagaço na estação,
Nos olhos de um beirão
Vejo a fera da fronteira.

Ir pra Angola
Pode mesmo ser a salvação.
Ou São Paulo -
Receber calor de um povo irmão.
Ir abastecer-me onde há quem dance.

Promessas de Verão
Os marinhões as quebram:
Praia fora vão
Se águas-más lhes pegam.
Não posso mais esperar
Que a terra se alevante;
“Ser firme a procurar”,
Quero ir para diante.

Ai de mim, se tudo é ao contrário...
Tenho de ir cumprir nosso fadário.
Acabo de engolir num repelão -
Pergunta o bom beirão
Se isto era necessário.

Ir embora pode mesmo ser a solução:
Ver trabalho, brio, recompensa pela aflição.
Mas se isto não mudar eu não descanso…

E se eu for -
Quem te espera, Mariana?
Vais dormir nas guardas quentes de que cama?
Se eu for -
Quem vê paz na tua estampa?
P'ra onde irás se eu só voltar p'ra pôr cá a minha campa?

Ai de mim, não faço nem ideia...
Prometi partir na lua cheia.
Páro p'ra um bagaço na estação,
Nos olhos de um beirão
Vejo a fera da fronteira.

(Jorge Cruz, Diabo na Cruz, Roque Popular, 2012.
Quantas vezes, quantas, já o Reboliço, noutros lados, replicou as frases desta cantiga, que lhe faz pensar nos Zés Rebelos do mundo da diáspora portuguesa. O poema, bonito, faz-se ouvir muito bem e os rapazes são generosos a cantá-lo.)