sábado, 22 de outubro de 2016

[The Saints of Modern Art*]

Nem mistral nem calema, nem nevróticas danças
de feiticeiros contra as tensas muralhas
de um qualquer império. Um dos grandes poetas
da língua e do tempo morre numa cela de xisto e cal,
e nada pede. Esse era o seu único desejo
e habita-o como se fosse mansarda da alma
e toda a mesquinhez tivesse sido assoreada
na cave. Finalmente, encontrou o seu lugar
no mundo, um lugar só seu, em que as ombreiras
rangem como órgão de igreja afinado
pelas tempestades. Tem um harém de memórias
e vive numa orgia de ervas de cheiro, ao fundo
das narinas. Do sol, chega-lhe a proporção exacta
para que a penumbra não cegue de alegria.
Conquista e reconquista cada passo, até saber-se
definitivamente amado pelo seu povo de aranhas
e nervais. Talvez pudesse ter sido de outro modo,
ter nascido com asas e sem a atracção para o precipício
que o tornou celerado e menestrel. Que nada!
Recorda agora um profeta, feliz como uma galinha
do mato, que viu, a oriente, entregue ao acto de comer
ininterruptamente até sentir, de novo, fome:
a profecia do homem consumou-se e isso basta-lhe,
como um pensamento vazio ou um ruído branco.
Quando, finalmente, a morte vier assenhorear-se de si,
recebê-la-á com um abraço lânguido, quase sensual,
e juntos partirão à procura de um local que àquele se assemelhe,
sem que, para merecê-lo, seja preciso viver, que é como quem diz
quebrar o coração.

Miguel Martins
(publicado aqui em 05/06/2016 e no livro Desvão, não [edições], em Setembro de 2016)
(*Charles A. Riley II sobre o ideal ascético na arte contemporânea)