sábado, 15 de outubro de 2016

"Ars Poetica?"

Sempre aspirei a uma mais espaçosa forma
que fosse livre das pretensões de poesia ou prosa
e nos fizesse entender uns aos outros sem expor
autor ou leitor a sublimes agonias.

Na essência mesma da poesia há qualquer coisa indecente:
uma coisa se produz que não sabíamos ter,
piscamos então os olhos, como se saltasse um tigre
e ali estivesse à luz, batendo a cauda.

Por isso se diz, com justeza, que a poesia é ditada por um daimonion,   
ainda que seja exagerado afirmar que é um anjo.
É difícil descobrir de onde vem esse orgulho dos poetas,
quando tantas vezes a exibição das suas fragilidades os envergonha.

Que homem razoável se quereria uma cidade de demónios,
comportados como se estivessem em casa, falando em muitas línguas,
e que, não satisfeitos com roubar-lhe lábios ou mão,
labutam em mudar-lhe, conforme lhes convém, o fado?

É verdade que hoje se sobrestima o mórbido,   
e podereis pensar que estou só brincando
ou que achei mais um modo
de louvar a Arte usando-me da ironia.   

Houve um tempo em que só os livros sábios se liam,
o que nos ajudava a suportar as dores e as misérias.
Isso, afinal, não é bem o mesmo
que folhear os milhares de obras que saem das clínicas psiquiátricas.

Ainda assim, o mundo está diferente do que parece
e somos diferentes do que nos vemos em nossos desvarios.
Por isso as pessoas mantêm silenciosa integridade,
assim ganhando o respeito de familiares e vizinhos.

O propósito da poesia é lembrar-nos
como é difícil ser-se uma só pessoa,
já que a nossa casa está aberta, sem chaves nas portas,
e que entram e saem à vontade invisíveis convidados.

Aquilo que aqui digo, concedo, não é poesia,
pois os poemas deveriam ser escritos rara e relutantemente,
sob insuportável pressão e apenas com a esperança
de que os bons espíritos, e não os ruins, nos escolhem para seu instrumento.

Berkeley, 1968
(Tradução: AIS, a partir da versão inglesa do autor,  Czeslaw Milosz.
Obrigada, Adalberto Müller.)