quinta-feira, 14 de abril de 2005

Açores 4 (Farol da Ponta da Ribeirinha, 11 de Setembro)

....Esta manhã acordei passava pouco das 6. São as cinco horas de sono, não consigo ainda mais do que isto. Como ontem me deitei à uma e tal... Tinha jantado em casa de amigos. Esta manhã, portanto, madruguei. Mas fiquei na cama até às 9. Saí depois de ter visto um filme com o James Stewart e a Maureen O’Hara, The Rare Breed. Ainda não tomei o pequeno‑almoço mas tenho estado a comer bolachas e já bebi um chá dos meus. O que eu queria escrever não era isto.
....O mais provável é que esqueça estas imagens: a estradinha estreita ladeada por canavial e hortênsias e tudo verde, atrás e à frente. Depois, o azul do oceano, vasto, grande, com o Pico a aproximar‑se. É um gigante, aquela montanha, e de feitio feminino: escondem‑no as nuvens quase sempre, mas espreita, volta e meia, a mostrar só a ponta, pontiaguda, ou a deixar nada mais do que perceber a forma do seu extremo. É macho, mas feminino.
....O farol é uma ruína, certamente derrubado pelo sismo de 1998. Apetece‑me entrar, mas parec ser perigoso. Não há pedaço de muro que não esteja rachado, não há uma parede intacta e nenhum vidro nas janelas. Também não há ninguém aqui. De quantos em quantos minutos, ouve‑se um motor na estrada ao longe, a uns 2km. De resto, só o piar das gaivotas, as cigarras quase imperceptíveis, de tão constante que é o seu canto, e o ruído do vento nas folhas das canas. Não há ruídos do mar, o vento não vem de lá. À volta, de vez em quando, soa o chocalho do gado.
....Por cima das nuvens que rodeiam o Pico o sol queima o Faial, forte, inclemente (e sei o que isso significa, aqui). Vim até cá no carro do Gil. Vou dar a volta ao farol.
....Afinal, não passo da cancela, um tosco barrote de madeira cheio de pregos, atravessado sobre dois pedaços desconjuntados de muro. Agora lamento não ter trazido a máquina fotográfica. A descontinuidade das paredes, a desarmonia dos tijolos, à vista entre os azulejos das paredes, a intimidade das madeiras nas janelas, aquele – este – abandono, talvez se imprimissem o suficiente para, daqui a uns anos, eu reencontrar a sensação que agora me despertam. Mas sei que nunca seria assim, e que só este vento permanecerá para varrer de mim todas as lembranças e qualquer imagem. Sigo para os Cedros. Pretendo circundar a ilha. Ao sair reparo num aparelho de medição meteorológica. Como as leituras devem ser enviadas por via electrónica, a sensação de abandono não se altera.
....Estou no meio da ilha, a 7km da Caldeira. Cheira a bosta de vacas e aqui elas pastam sem o limite do fio electrificado. Olha‑se para o mar, lá em baixo, e só se vê erva verde, os arbustos de hortênsias só com as folhas, e pedras; nem um muro branco, nem um telhado. A estrada é de cascalho negro. Verde, verde, verde, o mar e o céu.
....A 5km da Caldeira, a paisagem muda. À minha frente está uma névoa cinzenta, o vento arrefece e a vegetação torna‑se baixinha, só de tufos e musgo. O ar é fresco, quase frio, e mal consigo ver o mar. Estou dentro de uma nuvem.
....Paro o carro. De acordo com o mapa, faltam ainda 3km para a caldeira, mas a estrada termina aqui. Fecho as portas e subo por uma escadinha de pedra, apenas alguns degraus. Antes de ver, adivinho a surpresa. Uau! Um alguidar gigante, forrado a erva fresquinha e muito verde‑viva, cheio até metade de suco esverdeado, uma tigela larga à minha frente, de verde e algumas poucas paredes esbranquiçadas, batidas em demasia pelo vento. Ao meio, lá em baixo, será assim como julgo que é a lua: crateras mais pequenas, miniaturas daquela onde estão, intermitentemente iluminadas pelo sol, à medida que o vento leva os farrapos de nuvem que querem tapar este cenário. É difícil imaginar sítio mais ermo, mais recolhido e, ao mesmo tempo, mais invulnerável e mais desolado. Só, mas forte por isso.
....Do meu lado esquerdo (sul?) desce uma nuvem para dentro da cratera maior. Quer descer, mas antes de meio começa a dissipar‑se. A nuvem ataca agora desde o centro, sobre o centro, e tenta descer, teimosamente, em direcção ao núcleo iluminado da caldeira. Vencem o sol e a luz, e a nuvem desaparece de novo, persiste apenas em tentar descer a vertente oeste. Ali vem ela, do outro lado agora. A placa diz da proibição de descer ao fundo da caldeira – mas é uma tentação difícil de vencer. Não me importaria de passar ali uma noite, protegida pelas suas paredes mas com a sensação permanente de que, a qualquer momento, elas poderiam apertar‑me contra si, esmagar‑me ou cuspir‑me, ou então deixar‑me ali, impávidas perante a pressão das nuvens de chumbo sobre um corpo pequeno. Notas sobre a caldeira: 2km de diâmetro, profundidade média de 400m; resultou do abatimento de um grande aparelho vulcânico e formou‑se por violentas erupções plinianas (da era do plioceno? Não faço ideia.) ou sub‑plinianas, que cobriram mais de metade da ilha com pedra‑pomes. Deve ter sido um daqueles espectáculos!