terça-feira, 19 de abril de 2005

Automóveis parados na berma da auto-estrada

Seguia, como sempre, a abrir. Sempre, sempre à pressa. Dentro do carro era onde punha os pensamentos a correr mais depressa, reavaliava o que fizera durante o dia ou iria ainda fazer. Habituara-se a ligar o rádio numa estação adequada a essa velocidade do espírito: rock mais pesado ou, em casos extremos, o relato do futebol.

Desacelerou para sair da autoestrada e topou com dois automóveis encostados à berma, cada um com os quatro piscas ligados. "Shit! Mais uns que bateram, é todos os dias... A minha sorte foi ter passado agora, senão daqui a pouco já tinha fila. É isto, uma roleta-russa: saber se chego cedo a casa ou não depende da fortuna, do fado, do destino." Nestas alturas, blasfemava, usava em silêncio todos os nomes torpes que conhecia e dedicava-os, nesse silêncio, a quem quer que fosse que estivesse a contribuir para lhe atrasar a vida. Nunca, por nunca, deixava de se pensar como vítima daquilo que estava a acontecer aos outros.

Aproximava-se dos dois carros e, dentro do seu pensamento, à medida que os via mais de perto, as invectivas iam soando com mais volume. A estrada avançava para trás. Praguejou ainda mais, ao ver que estavam demasiado perto da saída da estrada. Teria de meter a mudança abaixo, não poderia sair a desacelerar, da maneira a que se habituara: lenta, suavemente. Praguejava, a música batia-lhe os compassos dos impropérios, cerrava as mãos sobre o volante e contraía os músculos do queixo, contrariada.

Até que passou junto deles. Dois automóveis, um atrás do outro, com os quatro piscas ligados. Entre os dois carros, um rapaz e uma rapariga afagavam-se, com pressa, com os gestos rápidos da velocidade que não tinham. Dentro do seu carro em andamento, as mãos caíram-lhe do volante, o queixo libertou-se e o pensamento, por uns segundos, ficou silencioso.