quinta-feira, 15 de setembro de 2005

"E tu, Ana, já encontraste Deus?"

Fiquei-me. Não é pergunta que me façam todos os dias, embora seja coisa em que me apanho a pensar, de vez em quando. Mas é uma pergunta de intimidade, que não se deixa fazer a qualquer pessoa e, ou exige de quem a faz grande familiaridade com a pessoa a quem é feita (ou alguma saudável ingenuidade), ou então exige àquele a quem é feita grande poder de encaixe e coragem para a aceitar (que já para lhe dar resposta são "outros quinhentos"...).
O caso foi uma mistura de tudo isto. Não deixei resposta definitiva, nem sei como o faria. Fui-me esquivando com "Deus é isto", em que acredito ainda, mas que não me deixa totalmente satisfeita. Depois, já sozinha, fui acrescentando (algumas vezes a corar da minha própria ingenuidade): "Deus é tudo o que é belo", "Deus é a poesia que leio e me deixa em êxtase", "Deus é o mar e o meu encontro nele", por aí adiante. Nada feito: não me basta. Acima de tudo, não basta como resposta.
Voltei-me para fora de mim (mas não poderei dizer "Fiquei fora de mim", engraçado...). Fora de mim há Wittgenstein, cujas frases me bastam muitas vezes. Mas o meu Wittgenstein viaja agora pelo Atlântico, há-de estar prestes a chegar, num caixote com mais outros. Aguardo. Aqui mais perto tenho Baudelaire, que também me ajuda. Releio as frases de "LÉcole Païenne" e relembro a sua ira: "Depuis quelque temps, j'ai tout l'Olympe à mes trousses, et j'en souffre beaucoup ; je reçois des dieux sur la tête comme on reçoit des cheminées. Il me semble que je fais un mauvais rêve, que je roule à travers le vide et qu'une foule d'idoles de bois, de fer, d'or et d'argent, tombent avec moi, me poursuivent dans ma chute, me cognent et me brisent la tête et les reins." Que é como quem diz (e a tradução é libérrima), "Anda o Olimpo todo a atirar-se a mim, a perseguir-me. Estou como num vazio, num pesadelo e caem-me em cima os ídolos de madeira, de ferro, de ouro e prata, caem comigo, empurram-me e continuam a perseguir-me, fuga adentro, atacam-me a cabeça e os rins."
Deixei de fora a minha frase favorita, a que me oferece alguma luz como resposta à pergunta inicial: "recebo os deuses na cabeça, como se recebem chaminés". Deus, para mim, é também a possibilidade de imaginar que sou uma casa.