sábado, 10 de setembro de 2005

Mas, regressando à conversa...

Quando já não percebo, para além das sensações, porque é que gosto de Paris, visito esta página e leio as legendas das fotografias. Ou então recordo três ocasiões.

1) Da primeira vez que visitei Paris, tive como cicerone um grande amigo, parisiense e historiador da civilização urbana. Mostrou-me o hotel onde eu ficaria, num quarto alcatifado não só no chão, mas no tecto e nas paredes, e saímos para a rue Sedaine (que continua a ser, de alguma maneira, a das sedas, com as lojas indianas, porta sim porta sim, de venda de tecidos a retalho). Sem tentar fixar o caminho, que hoje conheço de olhos fechados, segui-o até à Bastilha e, dali, pela rue Saint Antoine. Parámos numa ruela, de Birague, onde me explicou o sentido das fachadas, dos tamanhos das janelas, diferentes em cada andar, e das distinções sociais que significavam. Andados uns metros, desembocámos na Place des Vosges. Até hoje, é essa a minha ideia de "entrada triunfal".

2) Da segunda vez que visitei Paris, guiou-me outro historiador, mas da pré-história das cidades. Vínhamos da Bvd Haussmann, seguimos pela Montmartre e entrámos depois na Poissonière. A noite ia caindo e acendiam-se as luzes. Numa esquina, acendeu-se um néon monumental com as letras R E X uma por cima da outra, iluminadas sobre o cilindro que fechava a aresta do prédio. Por baixo das letras gigantes um cartaz desporporcional anunciava: Apocalypse Now Redux (passava na capital ao mesmo tempo que, nesse ano, era exibido em Cannes)! Despedi-me do cicerone, que não é cinéfilo, até ao dia seguinte, e pensei na aventura que seria ver AQUELE filme; tremia só de pensar que não houvesse bilhetes. Coppola é grande; Apocaypse Now é grande - tudo isso já eu sabia. O que não poderia saber, porque tinha dado com aquela sala sem imaginar sequer que existia, era que o Rex tem lugar confortável para 2750 loucos como eu, um écran publicitário que me fez pensar não ter olhos que chegassem e um écran para os filmes propriamente ditos ainda maior. I was in for an experience, pois estava. Nem sabia para onde me havia de virar: eram as paredes da sala, eram os espectadores, eram os vendedores de doces, era o écran a descer; e, depois disso, foi o filme, a emoção de o ver num tamanho imenso e de entoar, com o coro dos milhares que ali estavam, no momento exacto e sem ensaio, "Charlie don't surf!"

3) Foi há pouco mais de três anos, dia 5 de Setembro de 2002. O meu amigo parisiense levava-me ao hotel depois de um jantarinho bom ali perto de Les Halles. Decidimos ir a pé, como ambos gostávamos, para passarmos por ruas que ele conhecia desde a infância. Numa das praças, parámos e ele ia explicando: "Esta é a Place de la République, a minha mãe morou aqui"; de repente, a face fez-se-lhe cenho, enrugou a testa. A placa com o nome da praça dizia, sem sombra nenhuma de dúvida, "Place Vivendi". Jurava a pés juntos que aquilo era a Place de la République, que sempre ali passara, como poderia não ser?, que diabo teria acontecido, e ia ficando mais e mais confuso. Seguimos, mesmo assim, ele a pensar que estava a ficar velho e com medo já de se ter perdido; eu, indecidida sobre a veracidade daquela confusão, que no entanto parecia verdadeira, sem coragem para tirar o mapa da mala e já sem saber se acabaria por chegar ao hotel naquela noite... A notícia apareceu no Libération, dois dias depois: um “comando” civil de seis equipas de operacionais (que incluíam antigos urbanistas de Paris, directores de revistas de arte, arquitectos, realizadores de cinema, litografistas, galeristas e publicitários) fez a ronda de mais de dez praças da cidade e trocou as tradicionais placas azuis com os topónimos por outras, em cartão mas de resto semelhantes às oficiais, com nomes de empresas cotadas na Bolsa e protagonistas recentes de escândalos financeiros, em França e não só. A operação chamou‑se “Liberalismo, até onde?” e foi organizada pelo pintor Bruno Macé. Os participantes vestiam fatos‑macaco azuis com a inscrição “Cidade de Paris Arte Pública”. Para aprendermos a não confiar nas aparências e a suspeitar, suspeitar sempre do que dizem as letras.