quinta-feira, 15 de dezembro de 2005

A insónia do deus

Era ainda madrugada quando o deus acordou, despertado pelo chapinhar de alguém nas ondas lá fora. Algum outro deus enganava a insónia àquela hora temporã, ou entretinha-se ainda a vigiar com a sua a claridade da lua cheia.
Acordara, fosse o que fosse, e parecia-lhe não haver imperativo – divino ou humano – que o devolvesse aos sonhos. Voltou-se na cama para um lado, depois para o outro, indeciso sobre se haveria de erguer-se e fazer daquela uma hora de início ou dar ao corpo, por mais uns momentos, o torpor da preguiça. Tentou pensar nesse corpo. Mexia devagar os dedos dos pés, encantado com o movimento que alastrava às pernas, às coxas e ao ventre. Forçava-o tronco acima, até se estender aos braços, tornar ao espaldar dos ombros e redemoinhar-lhe pela cara. Divertia-o preencher com a lembrança da matéria aquele espaço agora docemente amorfo.
Do lado de fora, a deusa escorregava para fora do mar, agora calmo, e dirigia-se à parede que dividia aquele cenário do interior onde jazia o deus. Encostou o rosto à parede, fechou os olhos e, em silêncio, ordenou ao corpo deitado que adormecesse de novo. Foi clara na ordem: aos dedos dos pés, às pernas e coxas, ao ventre, ao tronco, aos braços e ao espaldar dos ombros. Quando, por fim, entrou no quarto, ainda viu o brilho do seu sopro a fazer círculos sobre a almofada.