segunda-feira, 7 de agosto de 2006

Começam os trabalhos no moinho

....“E agora?”, pergunta um dos homens, no piso intermédio – depois de estarem encostadas à parede as duas mós do casal de mós do lado Norte, retirados os calços de madeira que o ajustavam à mó de baixo e varridas as teias e o pó velho dos veios da mó. Entretanto, o discurso fora arqueológico: qual a razão que levara o avô a usar cunhas de madeira e a desprezar a mó de enchimento, armada com aro de ferro, que está arrumada à parede desde que me conheço.
....“Ainda só andámos cinco metros e quarenta e não chegámos a meio.” O mano anda com o pai no piso do topo, a tirar o diâmetro. O mais que agora se faz é tirar medidas, para que, quando as peças forem remontadas, tudo calhe certo como estava. “Não estás a segurar nisso, pai!” “Ó filho, tu é que tens de segurar na fita...” “Sim, mas tu também és a minha segurança.”
....O cunhado mexe-se como um árbitro no meio do campo. Vai fotografando sem ser visto, sem ser trambolho no caminho dos quatro mestres. O mestre capataz, o Ti’Caetano, vem com o filho e mais dois, os carpinteiros, o Sr Chico e o Sr Joaquim.
....A mó do lado Sul ainda está montada. Tem gravada uma data, 7-5-1961. Não havia nesse tempo Reboliço, nem Lobito. Haveria um Margot, o setter irlandês. Ou não, esse era o da infância do pai (que, em 1961, fazia 22 anos).
....As medidas que o pai e o mano tiraram estão ao milímetro, de fita métrica e calculadora. O mestre Caetano, a olho, fez outra conta, com os mesmos resultados.
....Passaram todos para o piso térreo. A Luca veio esta manhã com os donos e entra pela porta grande. Queda-se, para as festas do cunhado, e volta a sair do moinho pela porta de poente. A semana passada morreu dentro do moinho uma canita do vizinho. Tinha entrado para se refugiar da calma e não deu conta de se fecharem as portas e as janelas. Nem o pai deu por ela, escondida nalgum canto enquanto ele trancava o moinho. Mais tarde, o animal tentou sair, desceu à casa do motor pela passagem que existe na parede e serve de canal às correias do motor para a engrenagem. Na casa do motor, esgravatou o chão, espalhou as cebolas e os alhos ali dispostos para secarem. Mas não achou meio de sair. “Era p’ra morrer, já estava velha,” disse o vizinho, quando soube.
....“É de 1973 este calendário. Ainda a gente não havia,” diz a mana para o mano.
....Os manos lêem o que já mal se percebe, nas ombreiras da porta grande. “A Helena pesa 30 quilos” “Só podia ser a tia Lena.” A filha do vizinho António é Helena, seria ela? Por aquele tempo teria uns nove ou dez anos. Na parede grossa à entrada o avô apontava contas, as dos avios e, mais tarde, as outras, as que lhe vinham sem cessar à cabeça, já no tempo em que o moinho não moía, punha-se ele ao fresco a inventar cálculos.
....Há seis mãos de homens a agarrar a longa cunha de madeira, para retirar a roda dentada do piso térreo, a que transmite a energia do motor a gasóleo para o casal de mós do lado Sul. Esta é a roda mandada, é toda de madeira e fica na horizontal; atrás dela, a mandante, de madeira e ferro, está na vertical.
....“Tragam lá o macaco,” grita o pai. Diz o Sr Joaquim que o que ele quer é o aliviador, agora “macaco”... “Ah, isto não mexe. Tragam lá o spray.” “Já está solta, agora o problema é subir p’ra cima.” “Dê cá a alavanca de ferro. E agora dê-me a alavanca de madeira, p’ra isto levantar ao mesmo tempo.” Esta vai ser mais má de tirar que as mós. “Era sempre uma tourada...”, diz o pai. “Com estes macaquinhos, não vai lá.”
....A mãe veio da casa e sentou-se num banco a ver, no piso de baixo. Esta roda tem de ser tirada agora, para se desengrenar a mó do piso de cima.
....“Não há meio, não mexe. Aquilo era p’ra estar ali sempre,” diz o mestre Caetano a tirar a boina da cabeça e a coçar a testa. “Em vinte anos, ganham raízes.” As alavancas chiam e estalam, sob a força dos seis braços que tentam libertar a roda. Não há meio.
....É ainda de manhã cedo e com as duas portas escancaradas, uma em frente à outra, está-se dentro do moinho com o vento lá de fora. A diferença é que, dentro, as paredes grossas arrefecem o ar.
....Partiu-se a longa alavanca de linha direita. Era de madeira de azinho. Estas peças ainda matarão muita madeira. Um moinho com raízes sossegadas há quase trinta anos não se deixa desmontar à primeira.
....Há um conselho de mestres, de cada vez que tem de se mexer numa peça. O que deve sair primeiro, o que tem de ficar, o que não sai, onde se deixa a peça quando sair. É um enigma que se vai resolvendo à medida que se adensa e se adensa conforme se resolve.
....“Tira-te daí, moço, não te caia uma mó no olho.” “E há caixa de primeiros socorros?” “Não é preciso, façam uma promessa.”
....A Luca já não sai daqui. “O bicho quer é isto,” diz o pai. “Aceita as festas todas e não volta a unha?”, admira-se um dos carpinteiros. O mano tinha preparado um baraço para a prender no piso térreo. “Passei meia hora a atá-la, para ela não subir ao piso de cima.” Quando lá chegou, já a bicha lá estava.
....“Aqui neste buraquinho deve estar outro ninho de ferros.”
....Os homens estão todos no piso intermédio. Estou sozinha cá em baixo. Encostada à parede, ao alto e fechada, está a cadeira de lona verde-seco, onde o avô dormia as folgas frescas. Perto do chão, o tecido está carcomido por bolor. Prende-se à armação de madeira por uns fios reles, cinco ou seis, que resistem há anos, abanados sempre para o lado da rua, quando passa corrente de ar. Na parte de cima, uma mancha de humidade, redonda, da água que lhe tem caído. Ao lado há uma mesa velha, hoje coberta com garrafões de água, um pequeno contentor de vinho tinto e cestos, com figos e com pão. São os bornais dos mestres. Debaixo dos quatro pés da mesa, enrolada e atada, uma corda grossa, da espessura de um braço magro. Corda de prender as velas.
....Olho para fora, através da porta aberta que dá para a estrada. No enquadramento, vejo três ciprestes, para lá dos carros que passam, vinhedo, oliveiras e umas poucas casas, além dos postes da electricidade. Devia fechar esta porta. O vento que entra agora é já quente e, com a velocidade a que passa, não tem tempo de arrefecer. Mas não me levanto. A porta chia, move-se pouco. O postigo bate com a força do vento. Por cima do tecto, sobre mim, ouço martelar, as vozes dos homens, o pó e bocadinhos de madeira que vão caindo neste piso, enxotados pelas pisadas, marteladas e vassouradas no chão de cima. Quando paro de escrever, o vento levanta as folhas do caderno.
....Não deram tirada a mó. “Deixem-na ficar até que se almoce, que o que ela quer é isso.”