segunda-feira, 18 de setembro de 2006

Epígrafes

Ao longo dos anos (já conto mais de dez, credo...) tenho escolhido, alternadamente, duas epígrafes para acrescentar às bibliografias das disciplinas de Literatura que ensino. Pensei muito nelas quando as escolhi a primeira vez, mas depois interiorizei-as, ou seja, passaram para uma espécie de esquecimento que me permite agir com elas entranhadas e tê-las, afinal, sempre presentes. Uma é de Francis Bacon, num ensaio que escreveu sobre o estudo, e diz assim: "A leitura faz o homem completo; a conversa, o homem preparado; a escrita, o homem preciso." A outra epígrafe é de Stanley Cavell, num dos livros em que anda à procura da felicidade, e diz: "Gostaria de sublinhar que a maneira de ultrapassar correctamente, filosoficamente, a teoria é deixar que o objecto ou a obra que nos interessa nos ensine como havemos de a considerar."
Ambas as frases me deixam perplexa, isto é, silenciosa a pensar e a estranhar que não se reflicta mais ainda sobre as questões que levantam. Até na diferença de estilos que estabelecem: a primeira, típica de uma viragem de século (o XVI para o XVII) ansiosa pelo assentar da poeira de novas e admiráveis descobertas (Bacon é contemporâneo de Shakespeare, que, por volta de 1611, haveria de escrever na sua peça derradeira, pela boca de Miranda, a frase que ainda hoje ressoa, "O brave new world / That has such people in't!"), é um aforismo. Assertiva, sem dúvidas aparentes. Orientadora dos novos seres do novo mundo. Um pilar de sabedoria, pois.
Na segunda, Cavell já conta parte da longa história do conhecimento humano. Introduz a frase com uma proposição da sua vontade individual; pretende chamar a atenção para um aspecto (entre vários) da maneira de conhecer. Mas, no fundo, não deixa de ser assertivo. E de vincar com precisão (a mesma precisão que Bacon dizia que se atingiria pela escrita) a solução para uma dúvida (Como abordar um objecto de estudo?). Ora, como é característico dos nossos tempos epistemológicos, a solução passa pelo enredar de interrogações - o que quer Cavell dizer com "ultrapassar a teoria"? Em que é que essa ultrapassagem é necessária? O que é uma ultrapassagem "correcta" da teoria? E como é que "correcta" é um sinónimo tão transparente de "filosófica"? Tudo isto ainda antes de se pensar no que significa "deixar que o objecto" decida, nos mostre, como se há-de olhar para ele. Mais do que incómodas, são perguntas estimulantes. E é esse estímulo que gosto de encontrar no primeiro dia de aulas. É hoje.