Ao longo dos anos (já conto mais de dez, credo...) tenho escolhido, alternadamente, duas epígrafes para acrescentar às bibliografias das disciplinas de Literatura que ensino. Pensei muito nelas quando as escolhi a primeira vez, mas depois interiorizei-as, ou seja, passaram para uma espécie de esquecimento que me permite agir com elas entranhadas e tê-las, afinal, sempre presentes. Uma é de Francis Bacon, num ensaio que escreveu sobre o estudo, e diz assim: "A leitura faz o homem completo; a conversa, o homem preparado; a escrita, o homem preciso." A outra epígrafe é de Stanley Cavell, num dos livros em que anda à procura da felicidade, e diz: "Gostaria de sublinhar que a maneira de ultrapassar correctamente, filosoficamente, a teoria é deixar que o objecto ou a obra que nos interessa nos ensine como havemos de a considerar."
Ambas as frases me deixam perplexa, isto é, silenciosa a pensar e a estranhar que não se reflicta mais ainda sobre as questões que levantam. Até na diferença de estilos que estabelecem: a primeira, típica de uma viragem de século (o XVI para o XVII) ansiosa pelo assentar da poeira de novas e admiráveis descobertas (Bacon é contemporâneo de Shakespeare, que, por volta de 1611, haveria de escrever na sua peça derradeira, pela boca de Miranda, a frase que ainda hoje ressoa, "O brave new world / That has such people in't!"), é um aforismo. Assertiva, sem dúvidas aparentes. Orientadora dos novos seres do novo mundo. Um pilar de sabedoria, pois.
Na segunda, Cavell já conta parte da longa história do conhecimento humano. Introduz a frase com uma proposição da sua vontade individual; pretende chamar a atenção para um aspecto (entre vários) da maneira de conhecer. Mas, no fundo, não deixa de ser assertivo. E de vincar com precisão (a mesma precisão que Bacon dizia que se atingiria pela escrita) a solução para uma dúvida (Como abordar um objecto de estudo?). Ora, como é característico dos nossos tempos epistemológicos, a solução passa pelo enredar de interrogações - o que quer Cavell dizer com "ultrapassar a teoria"? Em que é que essa ultrapassagem é necessária? O que é uma ultrapassagem "correcta" da teoria? E como é que "correcta" é um sinónimo tão transparente de "filosófica"? Tudo isto ainda antes de se pensar no que significa "deixar que o objecto" decida, nos mostre, como se há-de olhar para ele. Mais do que incómodas, são perguntas estimulantes. E é esse estímulo que gosto de encontrar no primeiro dia de aulas. É hoje.