terça-feira, 10 de outubro de 2006

Do mano

[Disse-lhe assim, quando li o que me enviou: "Parece uma oração, brother! É lindo!"]

No sábado festejei, com muita, muita gente, o moinho.
É caso para dizer que festejámos! Todos os que puderam partilhar o momento e até mesmo os outros que, não tendo estado com a sua presença nesse lugar, nesse dia, connosco estiveram, mesmo!
Numa boleia de domingo, até ao autocarro que me haveria de levar de regresso a Lisboa, falei com a minha irmã Ana. Carros e comboios são lugares maravilhosos para se falar – são cabines/confessionários onde, num intervalo de tempo, somos obrigados ao delicioso confronto com os nossos pensamentos e os dos nossos companheiros momentâneos. São sítios suspensos, pela velocidade, no espaço e no tempo, heterotopias, ter-lhes-á chamado um certo francês (que não sei se andaria muito ou pouco de automóvel).
Falei então com a Ana, de sábado.
Contei-lhe deste meu pensamento sobre o moinho, de como era bonito e simples e único o que representa hoje. Numa altura em que o tempo é comprimido pela velocidade que a maravilha da técnica inventou, o tempo da execução das coisas é sempre menor, impossível de agarrar! A nossa sofisticação parece permitir uma passagem quase imediata desde a ideia e projecto da coisa para a sua existência material, da ideia para o produto, o processo de execução parece deixar de pesar, por assim dizer. Talvez seja pelo encantamento por esse momento que parece querer fugir que procuro a arquitectura… mas essas são outras conversas…).
Hoje já parece do pão esquecer-se a farinha, da farinha, o tempo em que era trigo, e do tempo em que de uma, passava a ser outra coisa, sendo a mesma.
Pois maravilha-me então esta ideia de um tempo tão mais lento, mais respirado, tão ritmado e de acordo com o resto à volta que toda uma vida se organizava e vivia em torno desse momento, hoje invisível, o tempo que levavam as coisas a acontecer, tinha espessura, definia um espaço próprio, era grande!
Dentro deste novo tempo de onde venho, com as coisas boas que me trouxe, maravilha-me entrar no moinho e sentir que estou a entrar num intervalo gigante que ia de uma saca de trigo a outra de farinha.

Na segunda, ao almoço, lembrei-me de querer ter-me recordado do momento dos três “discursos”: o do pai, o da Ana e o meu.
O do pai, que não sei se foi, ou não, gravado, dizia qualquer coisa como:
(…) “queria, do fundo do coração, agradecer a vossa visita, aqui, hoje (…)” depois disse que se sentia contente e orgulhoso por possuir um monumento! Mas sendo um “monumento”, património de todos, o seu sentimento de posse era relativo, pelo que se sentia como imaginava se pudessem sentir todos ali, naquele momento, como pessoas felizes por poderem cuidar, curar e amar um património comum, coisa que é, material e emocionalmente, cultura. Destas pessoas, do Alentejo, da cidade de Beja.
E então, nesta segunda-feira, depois do almoço, já em Lisboa, tive esta recordação de coisa que não aconteceu e que se construiu a partir de uma outra, parecida – o discurso não dito da Ana. (Na verdade dito, baixinho, mais tarde, para quatro amigos, as Anas, o João e o Pedro. Eu também o escutei.) Recordo a ideia das palavras que não disse em discurso, só esqueceram o doce dos rapazinhos [*] frente à janela do quarto do avô… contava de gatos, de cheiros, de lembranças grandes misturadas com pequenas, todas na mesma linha contente.

O meu não-discurso recordado dois dias depois, apesar de não ter acontecido, era assim:
(…) no calor e alegria desta tarde, no vento deste momento, e depois de ouvir a felicidade nas palavras do pai, a sua felicidade por poder contribuir para a preservação do moinho, para poderem outros felicitar-se; depois do calmo e tranquilo lembrar pessoalíssimo das palavras da Ana que, como num filme documentário, mostram imagens que reconfiguram as histórias neste lugar, depois destes dois “discursos”, quis lembrar-me de um momento que não vivi, ou pensar, a modo de impossível ficção, de um tempo mais atrás e procurei imaginar o momento em que, pela primeira vez, uma festa recebeu a construção do moinho. Esse momento, do qual não sei se há registo, do qual não sei se há lembrança, passada de memória em memória, até hoje.
Aqui, onde se junta mais de centena e meia de gente, apetrechados das nossas máquinas de memória e registo, com que fazemos filmes e fotografias, aqui, neste tempo, podendo estar a ser sobrevoados [**], no limite da atmosfera, por um olhar curioso e assustador também, que nos perscruta, aqui, na sobreposição de todos estes dispositivos de caça da memória que irão restituir, para sempre, o agora, apesar deles, e apesar de tudo, sentimos, talvez, uma intensidade parecida, semelhante, à da alegria de quem aqui, neste lugar, há mais de cem anos (que é uma maneira de dizer muito tempo…), experimentou a alegria de ver nascer o moinho! De ver rodar pela primeira vez as grandes varas, umas com as outras para sempre acompanhadas na sua económica geometria.
A nossa felicidade hoje é pela cura do passado que queremos guardar. Porque mesmo que muito indirecto, também é nosso – vosso, também somos nós.
A felicidade de então terá sido a da confiança e da força para um futuro, significado todo no ar e na terra que haveriam – do vento e do trigo – de dar vida às suas vidas, sustento com água e fogo misturado.
O pão dos seus dias, o pão também dos nossos.

João
Segunda-feira, 9 de Outubro de 2006

[* Ler o post acima]
[** Hehehe, ler outra vez o post acima]