Era de noite. O homem estava sentado à bancada da cozinha. Levou aos lábios a espuma fria e girou o corpo mal um bocadinho, só o suficiente para ver atrás de si o grande lago, através da janela da sala. Percebia a água nos reflexos escassos, uns dedos acima do pontão de madeira, uns dedos abaixo da linha onde começavam os troncos das árvores. As mesas lá de fora tinham ainda garrafas, copos e pratos por limpar. No caminho do pontão, gravilha já escasseada entre dois traços de troncos estreitos, alguns chinelos desemparelhados e uma bola eram as ruínas visíveis dos dias anteriores. O homem olhava para essas marcas e não se sentia triste. Respirava fundo, escutava o ar a descer pelo tronco abaixo e a regressar, a ser expulso de si. Podia ouvir-se a respirar. Deixou-se ficar ali, infectado pela quase imobilidade do lago e das folhas das árvores, a ouvir em si o ar e a cerveja. Não fechou os olhos.
Havia dois dias que tinham abalado os filhos e a mulher. Ele ficara, com mais umas semanas de trabalho à sua frente. Ainda assim, não podia queixar-se: a empresa concordara em alojá-lo numa confortável cabana à beira do lago, onde ficasse calmamente e pudesse receber a família durante os dias de férias deles. Agora, passadas as horas ruidosas e alegres, estava outra vez sozinho. Amargurava-o só um pouco a contradição em que vivia – em que sempre, de alguma maneira, vivera: o seu trabalho exigia-lhe o silêncio e o recolhimento em que destilava o olhar engenhoso sobre o seu e o pensamento dos outros; porém, sem o convívio e o riso do amor que aquela família lhe garantia, não podia ter a paz de espírito que o guiava ao silêncio.
Era em momentos como aquele, o corpo grande sentado imóvel e sozinho numa sala vazia em frente a um lago, sem ruídos externos, sem ninguém nem nada a interromper o fio longo e fino que vislumbrava, vezes raras, entre o seu pensamento e as coisas; quando, de caneca na mão, pousava os olhos no lago e imaginava ver ainda os salpicos de água dos filhos a mergulhar, e ouvir-lhes os risos; era então que ia tomando corpo na sua alma, como a camada de neve que sobe à medida silenciosa que pousam os flocos, a ideia de que não era mais do que aquilo: um homem irremediável e agradecidamente só.