segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Outro post longo [Eh! os poemas são assim, vou fazer o quê?...]

Epístola a Madame Lugones
Madame Lugones, J'ai commencé ces vers
en écoutant la voix d'un carillon d'Anvers...

Assim comecei, em francê
s, pensando em Rodenbach
quando fiz para o Brasil uma fuga... de Bach!

No Rio de Janeiro já eu prosseguira,
pondo em cada verso ouro e safira
e a esmeralda desses pássaros-moscas
que melificam entre as áureas sestas foscas
que temem os que temem o cruel vómito negro.
Já ali nã
o existe febre amarela. Alegro-me!
Et pour cause. Pan-americanizei
com um vago temor e muito pouca fé
na terra dos diamantes e da alegria
tropical. Encantou-me ver a vera maxixa,
mas vi também grande núcleo cordial
de almas cheias de amor, de sonhos, de ideal.
E se fazia um calor atroz, também havia
todas as consequê
ncias e vantagens do dia,
em panorama igual ao dos quadros e at
é
igual ao que imaginar se pudera... Basta.
Meu ditirambo brasileiro é ditirambo
que seu marido
aprovaria. Arcades ambo.
II
Mas o calor desse Brasil maravilhoso,
t
ão fecundo, tão grande, tão rico, tão formoso,
apesar da Tijuca e do céu opulento,
apesar desse foco vivaz de pensamento,
apesar de Nabuco, embaixador, e
dos delegados panamericanos que
fizeram o possível por fazer coisas boas,
saboreei o ácido do saco das minhas penas;
quero dizer, adoeci. A neurastenia
é um dom que me veio com a minha obra primeira.
Tenho vivido t
ão mal, e tão bem, como e tanto!o bom comedor guardo sob meu manto!
E t
ão bom bebedor sob esta capa!
Provei bocados de cardeal e de papa!...
E espremi o úbere
cerebral tantas vezes,
que estou grave. Isto é muito ruído e poucas nozes,
ao que dizem doutores de sapi
ência suma.
As doenças v
ão-se, em ilusão e espuma.
Receitam-me que n
ão faça nada, não pense em nada,
que me retire no campo a ver a madrugada,
mais as calhandras e com Garcilaso, e com
o sport. Bravo! Sim. Bem. Muito bem. E o La Nación?
E o meu trabalho diário e preciso e fatal?
N
ão se sabe que sou cônsul, como Stendhal?
É preciso que o médico que tal receite d
ê
também o livro de cheques do Crédit Lyonnais,
e mande um automóvel devorador de vento,
onde se passeie o meu egrégio aborrecimento,
farto de profilaxia, de ci
ência e de verdade.
III
Enfim, convalescente, cheguei à nossa cidade
de Buenos Aires, n
ão sem ter escutado
mister Root a bordo do Charleston sagrado;
mas a convalesc
ência durou pouco. Que digo?
A emoç
ão, o entusiasmo e o lembrar amigo,
o banquete do La Nación, que foi estupendo,
as minhas velhas seringas com seu pâ
nico estrondo,
e esse fervor portenho, esse perpétuo arder,
e o milagre de graça que brota na mulher
argentina, e minhas â
nsias de gozar essa terra,
puseram-me de nuevo com os nervos em guerra.
E regressei a Paris. Regressei ao inimigo
terrível, centro da neurose, umbigo
da locura, foco de todo o surmenage
onde faço muito bem o papel de sauvage
fechado na minha cela da rue Marivaux,
confiando só em mim e resguardando o eu.
E se o resguardei, senhora, que n
ão fui
o que chamam os parisienses uma p
êra!
Ao meu canto me v
êm buscar as intrigas,
as pequenas misérias, as traiçõ
es amigas,
e as ingratidõ
es. A minha maldita visão
sentimental do mundo aperta-me o coraç
ão,
e assim qualquer malandro me explorará a gosto.
Sou assim. Podem-me enganar com calma. É justo.
Por isso os astutos, despachados, dizem que
n
ão conheço o valor do dinheiro. Já sei!
Que ando, nefelibata, pelas nuvens... Entendo.
Que n
ão sou homem prático na vida... Estupendo!
Sim, confesso: sou inútil. N
ão trabalho
para arrancar a outro a sua pitança; n
ão desço
para levar a vida sórdida de certos adivinhadores.
N
ão poupo em seda, nem em champanhe, nem em flores.
N
ão combino subtis pequenezas, nem quero
tirar da boca o p
ão ao companheiro.
Compraz-me ver em colos brancos os diamantes.
Gosto de gentes de maneiras elegantes,
de palavras finas e nobres ideias.
Pessoas sem higiene nem urbanidade, de feios
tra
ços, avaros, torpes, ou malignos e rudes,
deixam, confesso, os meus entusiasmos mudos.
N
ão conheço o valor do ouro... Sabem esses
que tal dizem o amargo do jugo dos meus sisos,
do suor da minha alma, do meu sangue, da minha tinta,
do pensamento na obra e da idea prenhe?
Acaso nasci filho de milionário?
Terei tido Cirineu no meu Calvário?

IV
Assim continuei em Paris o começado em Anvers.
Hoje, eis-me aqui em Maiorca, la terra dels foners,
como diz Mossen Cinto, o grande Catal
ão.
E desde aqui, senhora, os meus versos a ti v
ão,
perfumados de sal marinho e flor de limoeiro,
ao suave alento das ilhas Baleares.
Há um mar t
ão azul como o Partenopeo.
E o azul celestial, vasto como um desejo,
o tecto cristalino brune com sol de ouro.
Aqui tudo é alegre, fino, s
ão e sonoro.
Barcas de pescadores sobre o mar tranquilo
descubro do terraço da minha villa,
que se alça entre as flores do seu jardim fragrante,
com um monte atrás e o mar diante.

V
Às vezes vou ao mercado, que fica
na Plaza Mayor. (Que Coppée, n
ão é verdade?)
Roço-me num núcleo crespo de mulherama,
que vem pela carne, a fruta, as ramas.
As maiorquinas usam uma saia modesta,
lenço na cabeça e a trança nas costas.
As que vi ao passar, bem visto.
E as que n
ão a levem não se enojem por isto.
Vi umas camponesas com seus negros corpetes,
corpos de odaliscas, olhos de pivetes;
e um véu que lhes cai pelas costas, pelo colo,
deixando ao ar livre o obscuro cabelo.
Sobre a saia clara, um avental vistoso.
E saúdam com um bon dia tengui gracioso,
entre os cestos cheios de batatas e couves,
pimentos de cores, tomates enrubescidos,
rosadas cebolas, mel
ões, melancias,
que falam das Arábias, das Andaluzias.
Cabaças e nabos para oferecer assuntos
a Madame Noailles e Francis Jammes juntos.

Às vezes detenho-me nesses mercados
como se respirasse sopros de ventos vastos,
como se entrasse com o bafo o mundo.
Estou diante da casa onde nasceu Ramón
Llull
. E nesse instante a memória me conta
as coisas que disse a Rosa à
Pimenta...
Oh, como eu diria o sublime desterro
e a luta e a glória do maiorquino de ferro!
Oh, como cantaria num canto sonoro
a vida, a alma, o numen, do maiorquino de ouro!
Dos fundos espíritos dos meus preferidos.
Seus robles filosóficos est
ão cheios de ninhos
de rouxinol. É outro e é irm
ão de Dante.
Quantas vezes pensou o seu verbo de diamante
diante da
velha Sorbona de Paris sábio!
Quantas vezes vi o seu infolio e o seu astrolábio
numa bruma vaga de sonho, e quantas vezes
o ouvi falar aos árabes, qual António aos peixes,
num imaginar de pretéritas coisas
que, de t
ão antigas, se sentem tão formosas!
VI
Fiz uma pausa.
O tempo pô
s-se mau. O marà fúria do ar não cessa de bramar.
O temporal n
ão deixa que entrem os vapores. E
um yatch de luxo busca refúgio em Porto-Pi.
Porto-Pi é uma ba
ía aqui perto, pitoresca.
Vista linda: águas belas, doce luz e terra fresca.

Ah, senhora, se fosse possível a alguns
deixar a sua Babilónia, seu Tiro, sua Babel,
para poder vir a fazer a vida inteira
nesta luminosa e espl
êndida ribeira!
Há, não longe daqui, um arquiduque austríaco
que as maç
ãs de Ceres e as uvas de Baco
cultiva, num retiro arquiducal e egrégio.
Hospeda como um monje —e a hospedagem é régia—.
Sobre as rochas ergue-se a mans
ão senhorial
e a ilha lhe brinda ambiente imperial.

É um parente de Jean Orth. Um átrida
que aqui encontrou
da sua vida o segredo certo.É um sábio. Aplaudamos o príncipe discreto
que aproveita
à beira-mar esse segredo.
A ilha
é florida e cheia de encanto em todas as partes.
H
á um ar propício a todas as artes.
Em Pollensa pintou Santiago Rusiñol
coisas de flor de luz e de seda de sol.
E h
á uma villa de retiro espiritual, famosa:
a literata Sand escreveu em Valldemosa
um livro. Ignoro se veio aqui com Musset,
e se a vampira sofreu ou gozou, n
ão sei.
Porque é que a minha vida errante não me trouxe a estas sãs
costas antes de as prematuras c
ãs
de alma e cabeza terem em mim feito a misturada
mescla de tristeza, de vida e de esperan
ça?
Oh, que bom maiorquino me sentiria agora!
Oh, como provaria sal do mar, mel de aurora,
ao sentir como num caracol no meu cr
ânio
o divino e eterno rumor do Mediterr
âneo!
H
á em mim um grego antigo que aqui descansou um dia,
depois de o deixarem louco de melodia
as sereias rosadas que atra
íram a sua barca.
Quanto o meu ser respira, quanto a vista abarca,
recordo-o com os meus íntimos sentidos;
os aromas, as luzes, os ecos, os ru
ídos,
como em ondas atávicas me trazem lembran
ças
que formam os meus sonhos, vidas e esperanças.
Mas onde está aquele templo de mármore, e a gruta
onde mordi aquele seio doce como uma fruta?
Onde os homens ágeis que as pedras redondas
apanhavam para os couros das suas fundas?...

Calma, calma. Isto é muita poesia, senhora.
Agora h
á comerciantes muito modernos. Agora
mandam barcos prosaicos a dourada Val
ência,
Marselha, Barcelona e Génova. A ci
ência
comercial
hoje é forte e arrecada tudo.
Entretanto, respiro o meu salitre e o meu iodo
brindados pelas brisas deste golfo imenso,
e a um tempo, como Kant e como o asno, penso.
É o melhor.
VII
Aqui a minha epístola se conclui.
H
á uma ânsia de tempo que da minha pluma flui
por vezes, como h
á vezes de enorme economia.
«Se h
á, disse, senhora, alma clara, é a minha».
Olha-me transparentemente, com o teu marido,
e guarda-me o que possas do olvido.

(Ruben Darío, 1916. Traduzido por mim, com a atenção inestimável de outro poeta.)