quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Fala Pascoaes ao Reboliço:
"O narcisismo é caso grave, Reboliço; é o sentimento da nossa própria divindade. Só mais tarde abdicamos dela, trasladamo-la para Outrem... É quando desconfiamos da nossa pessoa muito adâmica e a entremostrar a cauda... Mas não abdicamos da nossa primazia ou do nosso egoísmo imperativo. Primeiro está o indivíduo ou o instinto alimentar, e, enfim, o sexual ou colectivo - o complexo de Lúculo e o de Édipo... O instinto alimentar, com todas as aberrações alcoólicas e gastronómicas, predomina até certa idade. Depois, é o lupanar e a sífilis, o casamento e o aborrecimento. Depois, são horas de dormir."*

Fala o Reboliço a Pascoaes:
- Se tal dizes da tua raça, Joaquim, não serei quem te desdiz. Horas de dormir, para mim - e como sabes - têm o ar do sagrado. Mas antes de recolher pergunto-me se essa cauda muito adâmica (tão adâmica, afinal, que te faz suspeitar de ti mesmo) que entremostras, essa cauda de demoniozinho egoísta, saberá fazer como a minha e abanar de felicidade por um passeio entre as azedas que agora enfeitam os montes. Livrava-te de algumas amarguras uma festa assim - mas entendo que te desse menos o que escrever... Não se poderá ter nunca tudo? Ora boa noite!...

(*Teixeira de Pascoaes, "Duplo Passeio," 1942; Obras Completas de Teixeira de Pascoaes, Introdução e aparato crítico por Jacinto do Prado Coelho, X volume, IV da prosa, Lisboa, Bertrand, 1975, p. 141.)