segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Liberdade exegética

....."A Agustina Bessa-Luís pôs na boca da personagem Fanny Owen [...], durante um baile, esta afirmação: 'A alma é um vício.' Com este dito, o que teria ela querido expressar? Verdade é que eu, para mim, não atinava. Porém, soava-me bem ao ouvido. E, sem conseguir um significado plausível, a minha curiosidade não se detinha. Apesar de ninguém me explicar esta insólita afirmação, sem eu próprio lhe encontrar razão de ser, ficou-me tal dito latente até hoje. Cheguei mesmo a perguntar à própria Agustina por que razão teria ela posto na boca da Francisca tal afirmação. E que significado poderia ter. Mas a Agustina declarou-me candidamente 'Não sei. Foi coisa que me saiu ao escrever. Que se me soltou.'
.....Continuei desolado, porque o dito me tocava e me despertava uma forte curiosidade. Até que, ultimamente, me ocorreu uma certa ideia que me parecia ajustar-se a esse dizer 'A alma é um vício.' O que é que então me ocorreu? Justamente, o vício. Porque ele mesmo, pela sua característica de ser vício, dum corpo que, uma vez possuído, só com enorme dificuldade esse mesmo corpo se liberta dele. Ora, quando a personagem Francisca diz 'A alma é um vício,' teria a Agustina inconscientemente querido dizer que o corpo enquanto vivo jamais se liberta da sua própria alma. Numa tentativa de compreensão, tombei finalmente nesta ideia: o vício caracteriza-se por ser algo de que o corpo, uma vez possuído por ele, só muito dificilmente dele, vício, se liberta. E assim, de conclusão em conclusão, acabei por chegar a esta ideia peregrina: a de que a alma é a rainha dos vícios. Será assim? Mais: assim sendo, tal como agora me estou a perguntar, e dada a consciência constitutiva do dito vício, não será então que o meu cinema é o vício da minha alma?"
(Manoel de Oliveira, 15 de Janeiro de 2008. Relembrado ontem e transcrito daqui, a propósito cá de coisas.)