quinta-feira, 5 de junho de 2008

Os sabujos

Há coisa de dois meses ou menos terminou uma fase da minha vida. Caracterizava-se pela busca permanente - silenciosa, mas permanente - de um livro que lera, em volume emprestado, por volta de 1996 e que nunca encontrara à venda para levar para casa e ler quando me desse vontade. Na Esquina, livraria de alfarrábio no Porto, entrei uma manhã alegre e corri a ver se havia livros do Aquilino Ribeiro: havia, uma fileira longa a ocupar mais de uma das tábuas da estante. Pus os dedos sobre as lombadas, a cabeça mal um bocadinho torcida para ler o que estava ao alto, e foi-se-me conformando o pensamento de "não, nem aqui o verei...", à medida que passavam os segundos e as lombadas. Até que um dedo pousou sobre uma das mais gastas - tão gasta pelo sol, comida da luz, que do título não se via nada. Céptica, a primeira ideia foi "só faltava que fosse... Mais nada querias, não?" Por teima, só por teima comigo, saquei da prateleira o volume. E li na capa, de surpresa cortada pelo jogo da expectativa, Andam Faunos Pelos Bosques. Por baixo, em letra mais pequena e amarela, Romance.

Hoje peguei-lhe de novo um instante (pois sou incapaz de o acometer de uma leva, de lhe esgotar num fôlego as páginas; gozado e terminado o jogo da procura, é como se quisesse, afinal, continuar nele por força de não chegar ao fim da leitura) e parei num pedacinho de parágrafo onde copulam os cães dos pastores com dois podengos da aldeia por onde passam:

"Já os sabujos, circunspectos uns, pisamansinho outros, desfrutavam na Farrusca do tio Olaia e no Kaiser do Cirilo Tendeiro, ela amolecida, mas airosa, êle muito triste e encaramonado, o cómico e nauseabundo enliçamento a que a natureza obriga os cães. À beira dos muros estendiam-se, da côr da lousa, longuíssimos panos de sombra."
(p.14 da 4ª edição da Bertrand)

Fiquei a pasmar, não do espectáculo dos cães mas do estendal ensombrado na pedra dos muros.